Home ColunasPlano Polêmico #60 | Joe Eszterhas: Um Dramaturgo Monotemático?

Plano Polêmico #60 | Joe Eszterhas: Um Dramaturgo Monotemático?

O que Showgirls e Jade possuem de similaridade com a estrutura dramática de Instinto Selvagem?

por Leonardo Campos
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A dramaturgia contemporânea é marcada por diversas vozes e abordagens, mas é inegável que certos roteiristas se destacam por suas temáticas recorrentes, construindo um corpo de trabalho que pode ser considerado monotemático. Joe Eszterhas é um exemplo emblemático dessa característica: as suas narrativas, embora diversificadas em enredos e estilos, frequentemente giram em torno de temas centrais que refletem aspectos da condição humana, do erotismo, da ambição e da moralidade, o que me levou, ao longo de anos amadurecendo interpretações sobre Instinto Selvagem, a questionar se o dramaturgo pode ser considerado um escritor monotemático.  No geral, um roteirista monotemático pode ser entendido como aquele cuja obra se refere frequentemente às mesmas ideias, emoções ou situações. Este tipo de abordagem não significa que as histórias do roteirista sejam repetitivas ou desprovidas de inovação, pelo contrário, a recorrência de temas pode proporcionar uma profundidade maior às obras. Esses temas se tornam uma assinatura, uma marca registrada que permite que o público reconheça e se conecte imediatamente com o trabalho do autor. No caso de Joe Eszterhas, suas histórias frequentemente exploram os limites da moralidade, especialmente em ambientes onde o poder, o sexo e a corrupção se entrelaçam. Este padrão pode ter raízes em suas experiências pessoais e na cultura da sociedade estadunidense, permitindo uma análise crítica sobre a vida contemporânea e os dilemas enfrentados pelos indivíduos. A grande questão é: ao se deparar nas mãos erradas, será que os temas recorrentes do autor conseguem manter o mesmo tom vibrante?

Um dos pilares mais notáveis da dramaturgia assinada por Eszterhas é sua abordagem do erotismo. Filmes como Instinto Selvagem e Showgirls não apenas desafiaram as normas sociais de sua época ao mostrar o sexo abertamente, mas também exploram a forma como a sexualidade se relaciona ao poder e à manipulação. O erotismo nas obras de Eszterhas é quase uma força motriz, frequentemente servindo como a chave que abre os portões de um universo moral caótico e conflituoso. A ambição é outro tema recorrente que permeia suas obras. A busca pela ascensão social e o desejo de conquistar posições de poder são elementos que marcam sua narrativa. No filme com Michael Douglas e Sharon Stone, por exemplo, vemos como a ambição pode levar a desfechos trágicos, enquanto a corrupção moral é uma constante na busca por sucesso. Essa dinâmica entre poder e ambição reflete um aspecto do “sonho americano”, destacando a vulnerabilidade humana frente ao que entendemos por cobiça e desejo, algo abordado na trajetória vertiginosa da protagonista Nomi Malone.

Em muitos de seus roteiros, Eszterhas habilmente entrelaça conflitos morais com dilemas pessoais. Seus personagens muitas vezes se encontram em situações em que devem escolher entre o desejo e a ética, o que provoca uma reflexão sobre os valores e a integridade. Nas suas narrativas, a linha entre o bem e o mal nunca é clara, o que revela a complexidade da natureza humana. Além dos temas mencionados, a obra de Eszterhas também se alimenta de referências da cultura pop e dos comportamentos sociais da época. Ele utiliza elementos da cultura de massa para construir narrativas que ressoam com o público, refletindo preocupações e fantasias contemporâneas. Essa interconexão entre ficção e realidade oferece uma lente através da qual podemos examinar questões sociais mais amplas, tornando suas obras uma discussão crítica da sociedade. Assim, a dramaturgia de Joe Eszterhas muitas vezes provoca reações polarizadas. Enquanto alguns críticos o acusam de ser superficial ou sensacionalista devido ao seu foco em erotismo e escândalos, outros reconhecem a profundidade psicológica e social presente em suas narrativas. É inegável que sua capacidade de capturar a atenção do público e gerar discussões em torno de sua temática o solidificou como um dos roteiristas mais provocativos de sua época.

Além disso, seu sucesso comercial, especialmente nas décadas de 1980 e 1990, aponta para uma demanda por histórias que desafiam normas sociais, oferecendo um olhar ousado sobre desejos ocultos e as realidades da vida moderna. A capacidade de Eszterhas de articular determinado tipo de narrativa que cativa e provoca reflexão é, sem dúvida, uma habilidade de grande prestígio no mundo da dramaturgia. Os seus temas se repetem, sim, mas não são tratados da mesma maneira, haja vista as conduções dos textos por realizadores de talento e visão diferentes, mesmo integrantes de um mesmo sistema de produção.

Para isso, vamos analisar aqui a jornada de três produções concebidas com base em roteiros do dramaturgo: Instinto Selvagem, Jade e Showgirls. Preparados? Vamos nessa.

Jade, lançado em 1995, foi dirigido por William Friedkin e logo em sua abertura, traz ecos de Instinto Selvagem, numa narrativa que mescla suspense, erotismo e drama policial, explorando a complexidade das relações humanas e os limites da moralidade. A trama gira em torno de David Corelli, um promotor público interpretado por David Caruso, que se vê envolvido em um caso de assassinato que liga sua ex-namorada, a enigmática personagem-título, a um mundo de corrupção e desejos incontroláveis. A narrativa se inicia quando um bilionário, conhecido por seus relacionamentos complicados com mulheres, é encontrado morto, e as evidências levam a Jade (Linda Fiorentino), uma mulher fatal semelhante ao ícone platinado interpretado por Sharon Stone na composição dramática anterior do roteirista. David, que tem um passado amoroso com ela, se vê em um dilema ético e emocional: como ele pode separar seus sentimentos pessoais da rigorosa aplicação da lei? Essa questão se torna o fio condutor da trama, enquanto David investiga não apenas o assassinato, mas também os segredos que cercam Jade e seu envolvimento com um mundo de luxúria e poder. Salvaguardadas as devidas proporções comparativas, sem querer enclausurar interpretações, essa base estrutural não é praticamente a mesma de Instinto Selvagem? Sem a direção do experiente cineasta responsável por clássicos de porte, como O Exorcista e Parceiros da Noite, o filme teria conseguido alguma relevância?

Um dos temas centrais de Jade é a exploração do desejo e da sexualidade. O filme aborda como esses elementos influenciam o comportamento dos personagens e, consequentemente, a trama. Jade nos é apresentada como uma femme fatale, uma mulher sensual e manipuladora, que exerce um poder sobre os homens ao seu redor. Essa representação da mulher como objeto de desejo e, simultaneamente, como uma figura de controle, provoca reflexões sobre a dinâmica de gênero e as expectativas sociais. Ademais, Jade também levanta questões acerca da moralidade e dos limites da lei. O filme questiona até onde conseguimos trafegar em nome do amor e do desejo. A ética está acima das nossas mais íntimas pulsões? David se vê constantemente tentado a ultrapassar os limites em suas buscas por respostas, algo que provoca um conflito entre sua vida pessoal e sua carreira, tal como o detetive de Michael Douglas na história concebida anteriormente pelo roteirista aparentemente dominado pela falta de criatividade e pressionado por entregar outro sucesso dentro de uma mesma temática. A luta interna de David ilustra a tensão entre o dever e a paixão, revelando como decisões impulsivas podem ter consequências devastadoras. Outro tema significativo no filme é a corrupção e a influência do dinheiro nas relações e na justiça. A trama revela como o poder econômico pode distorcer a verdade, levando à manipulação e ao encobrimento de crimes. Os personagens, mesmo aqueles que estão do lado da lei, acabam evidenciando uma moral ambígua, demonstrando que a justiça pode ser frequentemente moldada por interesses pessoais. Um pouco diferente, mas muito parecido, Instinto Selvagem traz este mesmo debate, mas engendrado por discussões em outras vias.

Showgirls, lançado em 1995 e dirigido por Paul Verhoeven, é um dos filmes mais polêmicos da história do cinema. Roteirizada por Joe Eszterhas, a narrativa foca na vida de Nomi Malone, uma jovem dançarina que chega a Las Vegas com o sonho de se tornar uma estrela. A trama, que se desenrola em um ambiente repleto de ambições e desejos, se destaca não apenas pela sua narrativa, mas também pelos temas provocativos que aborda. Nomi, interpretada por Elizabeth Berkley, é uma personagem que encarna o ideal de sonhos e aspirações, mas que ao longo da trama vai se deparar com as duras realidades da indústria do entretenimento. Desde sua chegada a Las Vegas, Nomi é lançada em um mundo de glamour, sedução e competição desenfreada. As suas interações com outros personagens, como a experiente dançarina Cristal (Gina Gershon) e o empresário Zack (Kyle MacLachlan), revelam as complexidades e traições que permeiam esse ambiente. Um dos principais temas de Showgirls é a busca incessante por poder e sucesso, que frequentemente leva a comportamentos autodestrutivos. Nomi, motivada por seu sonho, não hesita em usar sua beleza e corpo como armas para ascender na hierarquia do entretenimento.

Essa luta pelo status culmina em uma série de traições e alianças instáveis, que relembram o inevitável custo da ambição no mundo das artes performáticas. A transformação de Nomi de uma inocente recém-chegada para uma figura disposta a sacrificar tudo por seu sonho é um reflexo sombrio das realidades enfrentadas por muitos na indústria. Outro tema relevante é a sexualidade e a objetificação, que são centralizados na vida das dançarinas em Las Vegas. O filme expõe como as mulheres são frequentemente vistas como meros objetos de desejo, utilizadas para o prazer do público e subordinadas às vontades masculinas. A agressividade da sexualidade proposta no texto e levada para as telas contribuem para uma crítica sobre a misoginia e o machismo que permeiam o mundo do entretenimento. Nomi, enquanto busca sua identidade e validação, também se vê presa em um ciclo de exposição e exploração. Seria uma crítica ou uma reiteração do machismo no sistema hollywoodiano? Algo para se pensar. Ademais, Showgirls também lida com um tema que ainda hoje, nem todo mundo está preparado para conversar: a rivalidade feminina, apresentando uma visão distorcida da solidariedade entre mulheres. A relação entre Nomi e Cristal é marcada por uma combinação de amizade e competição, mostrando que o sucesso muitas vezes se traduz em inimizade.

Essa dinâmica revela como o sistema educa e força as mulheres a competirem entre si, ao invés de se apoiarem mutuamente em suas jornadas. Além disso, o filme incita uma discussão sobre a superficialidade da fama e do sucesso passageiro. Nomi percebe que mesmo ao alcançar os altos da indústria, a felicidade e a realização pessoal podem escapar. A busca por validação por meio do reconhecimento público se torna uma armadilha, levando à reflexão sobre o que realmente constitui o sucesso e a felicidade na vida. Em suma, Showgirls, apesar de ser frequentemente criticado por seu conteúdo e por seu estilo provocativo, nos convida o espectador a explorar aspectos profundos e inquietantes da ambição, da sexualidade e das complexidades das relações humanas em um mundo onde a superfície muitas vezes esconde verdades perturbadoras. A obra de Eszterhas, aliada à direção de Verhoeven, se solidifica como uma crítica cultural poderosa, que mesmo décadas após seu lançamento, continua a suscitar debates sobre o papel das mulheres na sociedade e na indústria do entretenimento. Execrado em seu lançamento, hoje o filme ganhou novas e mais equilibradas interpretações.

Mas, afinal, o que de fato estes três filmes possuem em comum? Joe Eszterhas é um renomado roteirista que alcançou notoriedade na indústria cinematográfica, especialmente nos anos 1990, ao criar roteiros que se tornaram ícones de um gênero específico: o thriller erótico. Isso é inegável. Embora os filmes aqui mencionados possam parecer distintos em suas narrativas e ambientações, eles compartilham uma série de similaridades que revelam a marca inconfundível do estilo de Eszterhas. Uma das primeiras similaridades mais evidentes é a exploração da sexualidade e do desejo. Em Instinto Selvagem, a sexualidade é fundamental para a construção da trama, onde a relação entre Catherine Tramell (Sharon Stone) e o detetive Nick Curran (Michael Douglas) gira em torno de manipulação e sedução. Showgirls segue uma linha semelhante, apresentando a ambição e a sexualidade de Nomi Malone em sua busca por fama em Las Vegas. E Jade, por sua vez, também explora a dinâmica entre o desejo sexual e o crime, ao focar na relação entre um promotor e uma femme fatale em um ambiente de corrupção e sedução. Tal ênfase na sexualidade como motor da narrativa reflete a inclinação de Eszterhas por tramas que usam o sexo como uma forma de poder, revelando não apenas a fraqueza dos personagens, mas também suas motivações mais profundas.

Outra similaridade marcante entre os três filmes é a presença de personagens femininas complexas, perigosas e moralmente ambíguas. Catherine Tramell é um exemplo clássico de uma “sereia urbana”, mulher que manipula os homens para alcançar seus objetivos. Em Showgirls, Malone, embora inicialmente apresentada como uma simples dançarina, gradualmente se transforma em uma figura poderosa, embora ambígua moralmente. Jade, por outro lado, é uma personagem que desafia convenções, apresentando uma mistura de vulnerabilidade e força, o que a torna igualmente fascinante, mas oriunda de uma estrutura dramática que pedia um pouco mais de lapidação. A maneira como Eszterhas escreve esses personagens destaca sua capacidade de subverter os papéis tradicionais de gênero, apresentando mulheres que não são apenas objeto de desejo, mas também agentes de suas próprias histórias. Além disso, a atmosfera de tensão e mistério permeia todos os três filmes. Em Instinto Selvagem, a tensão é construída através do suspense e do jogo de gato e rato entre o detetive e a sua suspeita, enquanto Jade utiliza o mistério de um crime brutal para impulsionar sua narrativa. Showgirls, embora mais focado em uma sátira da indústria do entretenimento, também mantém uma aura de tensão, especialmente nas interações competitivas entre as dançarinas, que revelam um lado obscuro da busca por sucesso.

Outra similaridade é a crítica social que está subjacente a cada filme. Instinto Selvagem reflete sobre a moralidade e os limites da lei em uma sociedade dominada por impulsos sexuais e desejos obscuros. Showgirls, ao retratar a indústria do entretenimento e o que acontece por trás das cortinas brilhantes de Las Vegas, provoca uma reflexão sobre a exploração e o custo do sucesso na cultura pop. Jade também critica a corrupção e as relações de poder dentro do sistema judicial e político. Por meio desses enredos, Eszterhas não apenas entretém, mas também faz o público refletir sobre questões mais amplas, evidenciando falhas na sociedade e a luta pelo poder. A estética visual, mais voltada para a interpretação dos realizadores e suas equipes, mas que também permeiam as rubricas dos textos dramáticos, também é um aspecto que esses filmes compartilham similaridades. Todos são caracterizados por uma cinematografia marcante que utiliza a luz e as sombras para criar um ambiente sugestivo e muitas vezes sensual. Outro ponto a ser destacado é a presença de temas de traição e duplo jogo. Em Instinto Selvagem, a relação entre os protagonistas é marcada por ambiguidades, onde nada é exatamente o que parece. Jade continua essa tendência, com revelações constantes que questionam a lealdade dos personagens. Em Showgirls, a competição entre as dançarinas leva a alianças e traições que refletem a natureza voraz do mundo do entretenimento. Essa exploração da traição e da duplicidade não só enriquece a narrativa, mas também intensifica o conflito interno dos personagens, que lutam constantemente contra suas próprias motivações e desejos.

Por fim, a assinatura de Eszterhas como roteirista é evidente na forma como os diálogos são escritos. Apesar de monotemático, ele tem um talento especial para criar trocas rápidas e intensas entre os personagens, que frequentemente revelam mais sobre eles do que as ações e situações ao redor. Os diálogos são uma extensão da tensão e da sexualidade presentes nas narrativas, servindo como um meio de comunicação que muitas vezes se transforma em um jogo de poder. Seu estilo é notável, em todos os três filmes, narrativas onde as palavras escolhidas são tão impactantes quanto ao que se tornam imagens projetadas nas telas. Em suma, Jade, Showgirls e Instinto Selvagem compartilham várias similaridades que atestam a competência de Joe Eszterhas como roteirista, mesmo que haja níveis de qualidade diferentes ao nivelarmos as três produções numa perspectiva comparativa. A forma como a sexualidade, a crítica social, a complexidade feminina, a tensão e a traição são tratadas reflete uma consistência na sua narrativa, tornando estes filmes não apenas entretenimento, mas também objetos de análise profunda sobre a natureza humana e a sociedade.

A criatividade é frequentemente considerada um dos pilares fundamentais da arte e no contexto da dramaturgia cinematográfica, o ato de escrever é um processo que deve refletir uma ampla gama de experiências e emoções humanas. No entanto, há casos em que dramaturgos se tornam monotemáticos, explorando uma única temática em diversas obras. Essa abordagem levanta questões sobre os limites da criatividade e as implicações dessa repetição temática. A postura monotemática, ou a tendência de um autor a se concentrar em um único tema, pode surgir por diversas razões. Um dos fatores pode ser a busca por profundidade em uma determinada questão. Neste sentido, a repetição pode ser vista não como um sinal de falta de criatividade, mas sim como uma forma de aprofundar o diálogo com o público. Esses autores, ao revisitarem seus temas preferidos, oriundos também dos impactos de suas experiências pessoais, transformados em conteúdos ficcionais, proporcionam uma reflexão contínua sobre questões que, por sua natureza, são universais e atemporais. Embora a repetição de uma temática possa oferecer uma profundidade de exploração que é valiosa, ela também corre o risco de se tornar “formulaica”. No limiar entre Instinto Selvagem e Jade, Joe Eszterhas cometeu esse deslize, mas reverteu a equação em Showgirls, passeando por um mesmo tema dentro de outra perspectiva.

Seria, por definição, monotemático? Sim. Isso não significa, por sua vez, que seja algo ruim.

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