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Crítica | Duna (Com Spoilers)

A introdução ao fardo.

por Kevin Rick
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  • Leiam, aqui, a crítica sem spoilers.

Lançado em 1965, Duna é um livro estranho, no melhor sentido da palavra. Ditando muito do que entendemos como clichês e arquétipos de ficções científicas (e até fantasias) hoje em dia – algo muito bem pontuado por meu colega Ritter Fan em sua crítica -, o autor Frank Herbert criou uma narrativa literária com um legado tão gigantesco que até a trilogia original de Star Wars foi influenciada pela saga. Mas, interessantemente, e aqui retorno ao “estranho” que citei antes, poucas obras (nenhuma que eu lembre de cabeça) foram capazes de condensar a quantidade de temas (religião, ecologia, imperialismo, colonialismo, psicologia, espiritualidade, diversidade cultural, etc) com um equilíbrio praticamente perfeito entre a complexa construção de mundo e uma história introspectiva de um herói bastante diferente à época. Aí eu te pergunto, como não classificar como estranho um livro que tem uma das mais complicadas mitologias da história da ficção científica, uma gigantesca quantidade de metáforas que renderiam uma tese do tamanho do livro, e, ainda assim, consegue ser um épico extremamente pessoal? Impossível, não? Bem, não foi impossível para Frank Herbert.

Mas certamente se pensava impossível para o Cinema. Depois da psicodélica abordagem de Alejandro Jodorowsky nunca sair do papel, e do absurdismo de David Lynch conquistar poucos fãs, o projeto para uma adaptação cinematográfica de Duna ficou engavetado por muitos anos, até que a Warner decidiu entregar a oportunidade para o genial Denis Villeneuve. O cineasta franco-canadense, então, tinha uma grande tarefa em navegar a tênue linha entre racional e simbólico da história de Herbert, decidindo por uma feliz proposta particular: focar em Paul Atreides (Timothée Chalamet). O protagonista é  filho e herdeiro do distinto duque Leto Atreides (Oscar Isaac), cuja família acaba de receber ordens do imperador para assumir o lucrativo governo do planeta deserto Arrakis, ou “Duna”, uma terra de areia e especiarias. É tarefa da Casa Atreides suprimir ou apaziguar o povo nativo de Arrakis, os Fremen, assim como manter a exploração comercial do mineral do planeta. Os mestres anteriores, os Harkonnen, liderados por seu barão obeso (Stellan Skarsgård), estão furiosos com sua expulsão, mas entendem que este é um estratagema político do imperador para minar a poderosa família Atreides com um posto colonial impossível.

Notem como, após eu dizer que Villeneuve foca o filme no arco pessoal de Paul, eu citei vários desdobramentos políticos, sociais, ecológicos e aristocráticos da história. Aí está a hercúlea tarefa de Villeneuve, precisando fazer uma dança de cadeiras entre tantas ramificações temáticas para seu épico. É por isso que o cineasta faz um certo “sacrifício” quando pensamos no material fonte, decidindo tomar uma rota em que Duna é mais sobre vermos o mundo influenciando nosso protagonista, nos introduzindo para sua jornada complexa entre herdeiro aristocrático e messias, do que necessariamente sobre esse mundo.

O épico imagético

O filme começa com uma narração de Chani (Zendaya), uma das indígenas Fremen de Arrakis, enquanto ela pondera quem será o próximo a oprimir seu povo. É um dos poucos momentos do longa que vemos a narração em off, artifício largamente usado (por motivos óbvios) no livro de Herbert, assim como monólogos internos. É uma montagem inicial bastante literal, demonstrando a devastação causada pelos Harkonnens, acompanhada por longas tomadas de exércitos, naves sendo destruídas em slow-motion e os tambores barulhentos de Hans Zimmer que praticamente viram tema do deserto. Com muita velocidade e facilidade, Duna mostra-se uma ópera espacial visualmente magnífica, com contornos de colonialismo.

Então, o título sobe e o filme corta para Paul levantando da cama, como se tivesse sonhado aquela sequência. A partir desse momento, o personagem de Chalamet estará em quase todos os quadros e sequências do filme em um conflito caótico com o qual um personagem em um amadurecimento extraordinário deve lutar. Existe até um certo minimalismo na maneira que Villeneuve sempre enquadra o personagem (como o diretor fez com Ryan Gosling em Blade Runner 2049). Além disso, acho interessante o recurso de “vídeo-aulas” para Paul sobre clima, história e costumes nativos de Arrakis, fazendo uma boa economia narrativa de exposição, sempre trazendo a mitologia para a perspectiva do jovem.

Mas o que estou querendo dizer com tudo isso? Bem, muito do épico que acontece em Duna está na imagem e na técnica, mas não tanto na história e dramaturgia em si. Temos um trabalho de câmera em grande parte estático e imponente, com tomadas amplas prolongadas que permitem que você absorva todos os detalhes dos cenários deslumbrantes, a majestade da arquitetura futurística, a complexidade do figurino imaginativo e aproveite as vistas das visões galácticas de Villeneuve. Gosto muito como o cineasta trabalha profundidade de campo (como na imagem acima) focando no primeiro plano, mas sempre mantendo naves, tecnologia, exércitos e até mesmo o ambiente (especialmente do deserto) acontecendo ao fundo enquanto personagens conversam ou caminham cotidianamente. A vastidão visual é acompanhada por uma partitura de Hans Zimmer bem suntuosa, com vozes humanas uivantes, percussões altíssimas e sensacionais ​​gaitas de fole espaciais.

Até mesmo a sequência de “contrato” entre Leto e um emissário do imperador tem uma carga colossal. Sem acordos entre quatro paredes. A aceitação do duque para ir à Arrakis acontece no meio de tropas, cercado de cordas dramáticas de Zimmer e um discurso epopeico de honra poderoso de Oscar Isaac. É tão inteligente por parte de Villeneuve trabalhar algo íntimo no foco, mas mantendo uma insinuação de vastidão que sempre mantém o filme épico, mesmo em situações banais. Ainda assim, Duna nunca se torna um blockbuster hiperativo como o Cinema pipoca atualmente preza, permitindo-se passagens silenciosas e contemplativas que não tiram qualquer mérito da grandeza da experiência.

No entanto, quando pensamos na parte temática do longa, Villeneuve tem um enfoque nas reações de Paul aos acontecimentos, desenvolvendo bem pouco do pano de fundo político, ecológico e religioso. Toda a complexidade temática do universo de Duna é exercitada através de sugestões. Quando o personagem chega em Arrakis, pessoas gritam seu nome messiânico, assim como outros personagens proferem frases proféticas esparsas. A problemática da escassez de água (e do sonho ecológico dos fremen) é proferida pontualmente, como na ótima sequência das palmeiras logo após vermos fremens fanáticos. Nada do cunho religioso das Bene Gesserit, ou ecológico com Kynes (Sharon Duncan-Brewster), é aprofundado em meandros como no livro, mas está lá. Villeneuve desenvolve a mitologia e seus temas com bastante sutileza, preferindo usá-los como mais um sugestivo problema para o fardo e o drama de Paul. Novamente, é menos sobre o mundo, e mais sobre como ele afeta o protagonista – e qual seu papel nisso tudo, como líder da Casa Atreides e como messias.

Degraus, não indivíduos

Em termos de exemplo, e não de comparação, Frodo em O Senhor dos Anéis é mais uma peça de Tolkien, e também da adaptação de Peter Jackson. O épico da Terra-Média trabalha com uma vasta casta de personagens com núcleos, arcos e subtramas próprias. É esse tipo de espaço para cada personagem que cria um afeto e os tornam memoráveis com a audiência. Quem aí não se lembra da competição entre Legolas e Gimli? Ou da entrada triunfal de Gandalf? O livro de Herbert segue um caminho similar, com muitas sequências de Leto e sua esposa, Lady Jessica (interpretada no filme por Rebecca Ferguson), sozinhos. Até Thuffir, Kynes e Stilgar têm ótimas histórias contidas na obra literária.

Não é que estou querendo reclamar de mudanças na adaptação, mas apenas dar contexto de como Villeneuve toma um rumo completamente diferente. Na mesma proposta de que tudo deste Universo serve ao drama de amadurecimento de Paul, todos os personagens coadjuvantes do círculo interno do protagonista funcionam como degraus dramáticos para o personagem. A montagem basicamente cria pequenos blocos para o elenco de luxo, composto por Oscar Isaac, Josh Brolin, Javier Bardem e Jason Momoa, interpretarem seus respectivos arquétipos que dão algum tipo de ensinamento para Paul.

Essa escolha narrativa é uma faca de dois gumes. Por um lado, há uma unidade dramática focada nas reações emocionais de Paul com a perda de cada familiar e amigo. Duncan Idaho (Momoa), em particular, imprime uma leveza e carisma necessários em um longa tão denso, fazendo com que o personagem se destaque, além de ter um belíssimo sacrifício final. Por outro lado, as mortes de Leto e Kynes, ou então a traição do Dr. Yeuh (Chen Chang), são ausentes de um peso dramático que não parta da (ótima) estilização de Villeneuve.

Existe uma falta de individualidade, consequência de um ritmo corrido ao longo da obra e com várias circunstâncias do elenco de apoio se resolvendo em elipse. Os personagens saem de Caladan rapidamente, pouco se estabelecem em Arrakis, e o inferno se inicia. Mesmo mantendo um tom paciente e contemplativo, acho a transição de atos do longa um tantinho acelerados para que possamos chegar ao desfecho no deserto. Talvez uma minutagem maior ajudaria em termos de desenvolvimento de algumas relações (senti muita falta de diálogos entre personagens coadjuvantes) e de arcos dramáticos.

A principal exceção seria Lady Jessica, essa sim funcionando em uníssono com Paul, em ótima interpretação de Rebecca Ferguson, frágil como uma mãe desesperada e corajosa como uma Bene Gesserit imponente na mesma medida. Também gosto bastante dos momentos esparsos do Barão, propositalmente maniqueísta, sendo diluído na narrativa para aparecer apenas quando totalmente necessário. Certas mudanças de caracterização do antagonista (como o meio de locomoção levitante se assemelhando a uma cobra) e algumas sequências à la Brando em Apocalypse Now tornam o Barão memorável – também valendo destacar Dave Bautista, que deixa uma boa impressão como Rabban mesmo no tempo limitado.

Olhando para o futuro

Quando vemos Paul e Jessica contemplando em desolação a destruição da Casa Atreides, Villeneuve parece começar a se soltar de algumas amarras da narrativa intricada de Herbert. Mesmo tendo ressalvas com a maneira esquecível que a maioria do círculo interno de Paul é lidado pelo cineasta, não há do que se reclamar do impacto dramático no protagonista e sua mãe. Como um maravilhoso épico trágico – notem como cada cadáver e olhar desesperado carrega um exagero na medida certa pelas lentes de Villeneuve -,  Duna se torna um filme de sobrevivência no ato final.

Havendo pouca necessidade de diálogos ou mudança de ambiente, Villeneuve se diverte e nos diverte com uma narrativa visual deslumbrante. Entre a parte mais filosófica e onírica das visões de Paul – com ótima mudança de personalidade de Chalamet -, e a constante fuga, seja os tópteros na tempestade de areia ou a aparição imponente dos vermes, em tons monocromáticos suaves, texturas ricas e paisagens sonoras profundas, vemos a especialidade estrondosa de Villeneuve como um espetáculo cheio de tensão na tela.

Tudo culmina no clímax da batalha entre Paul e Jamis (Babs Olusanmokun), em que Paul Atreides “morre”, para vermos o nascimento de um messias – ambíguo, como nos olhares receosos de Jessica. Mas o momento é apenas emblemático, assim como o encontro com Chani, para simbolizar o amadurecimento do protagonista. Ele veio sendo “morto” aos poucos pelo fardo do legado Atreides desde as cenas que conversa com Leto, assim como pelo fardo religioso com a sequência memorável de “o que tem na caixa?“. Mesmo não tendo o controle narrativo de construção de mundo do material original, Villeneuve prezou pelo principal aspecto de Duna: o épico pessoal. A grandiosidade desse universo se resolve na imagem e na técnica, enquanto seus temas complexos de cunho religioso e ambiental são sempre sugeridos na linguagem sutil do cineasta. No fim, Duna está sempre fazendo um estudo de personagem intimista de Paul dentro do formato de ópera espacial, com cada frame, personagem e ambiente servindo, por bem ou por mal, a seu drama de destinado, sempre olhando para o futuro com suas visões, pois este é apenas o começo. Que venha a parte 2!

Duna (Dune: Part One – EUA/Canadá, 2021)
Direção: Denis Villeneuve
Roteiro: Jon Spaihts, Denis Villeneuve, Eric Roth (baseado em romance de Frank Herbert)
Elenco: Timothée Chalamet, Rebecca Ferguson, Oscar Isaac, Josh Brolin, Stellan Skarsgård, Dave Bautista, Stephen McKinley Henderson, Zendaya, David Dastmalchian, Chang Chen, Sharon Duncan-Brewster, Charlotte Rampling, Jason Momoa, Javier Bardem, Babs Olusanmokun, Benjamin Clementine
Duração: 155 min.

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