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Crítica | Franz antes de Kafka

Um homem de todos os tempos.

por Ritter Fan
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Cinebiografias costumam seguir certos padrões estabelecidos ao longo de décadas pelos mais variados cineastas, o que não é de forma alguma algo necessariamente negativo, já que existem diversas obras que obedecem esse “manual não escrito” que resultam em verdadeiras obras de arte. Mesmo assim, é alvissareiro quando cineastas tentam caminhos diferentes, como foram os caso de Sofia Coppola e seu Maria Antonieta, Pablo Larraín com sua trilogia composta de Jackie, Spencer e Maria Callas, Shari Springer Berman e Robert Pulcini e seu Anti-Herói Americano, só para citar alguns. Cinco anos depois de sua parceria no falho O Charlatãoque abordou a vida real do curandeiro Jan Mikolášek, a diretora polonesa Agnieszka Holland, e o roteirista tcheco Marek Epstein retornam a esse gênero cinematográfico para apontar suas câmeras para Franz Kafka, um dos mais importantes escritores do século XX em uma obra que vem para rasgar o livro de convenções e que foi selecionado pela Polônia para ser candidato a uma vaga de Melhor Filme Internacional no Oscar de 2026.

No entanto, qual eu escrevi “rasgar o livro de convenções”, não queria de forma algum dizer que o roteiro de Esptein se perde em digressões ou que Holland enfeita sua obra com invencionices quaisquer. Ao contrário, há um foco constante em Franz Kafka, foco esse, porém, que não segue a cronologia padrão, com o pequenino Franz tendo seu cabelo aparado nos 10 segundo iniciais logo pulando para um jovem adulto Franz tentando se encaixar no mundo especialmente em sua tentativa vã de ter paz em uma casa barulhenta, com seu pai que não liga para nada a não ser seu negócio e seu escritório em uma passagem que não permite silêncio em momento algum. Há comicidade até, o que cria uma leveza interessante à narrativa sobre um homem com sérios problemas para seguir os ditames da sociedade e que encontra nas palavras que escreve sua única fuga a ponto de ser obcecado, produzindo com uma constância impressionante mesmo antes de ter algo publicado pela primeira vez.

Falando em uso das palavras, há uma ironia, pois nem o título original, apenas Franz, e nem o título em português, Franz antes de Kafka, acertam, em meu entender, no que Holland coloca nas telas a não ser que a escolha de Holland e Esptein tenha sido justamente fazer ironia. Afirmo isso, pois, com exceção das poucas cenas de Franz Kafka criança, em que ele é vivido por Daniel Dongres, não há nunca, em momento algum um Franz sem ser Franz Kafka e isso é muito, mas muito interessante ao longo da narrativa. Socialmente arredio, o jovem Franz nunca deixa de ser exatamente quem ele é, seja no trabalho de contador que detesta, seja alistando-se para a guerra (o que foi uma escolha dele, vale dizer), ou mesmo em relacionamentos românticos. Não é que não haja desenvolvimento do personagem, vale dizer, mas esse desenvolvimento não é o clássico, não é aquele que leva do ponto A ao ponto B e, então, ao ponto C. O roteiro de Epstein manipula a cronologia – não em seu sentido negativo – fazendo com que o desenvolvimento de Franz Kafka seja o quanto o espectador aprende aquilo que ele é, aquilo que já nos é “servido pronto” por uma atuação sensacional de Idan Weiss que vive o personagem real como talvez Buster Keaton interpretasse Kafka, ou seja, com um senso fino de ironia, um pouco (ok, talvez mais do que apenas um pouco) de insensibilidade e uma inadvertida veia humorística, uma atuação que reputo complexa, repleta de camadas e que fala muito sem a necessidade de palavras.

Mas essa manipulação da cronologia por parte de Epstein vai bem além e, se de um lado nos conta a história de Franz Kafka nas épocas históricas em que ela ocorre, por outra nos leva ao tempo presente, para a República Tcheca atual, em que passeamos por pontos turísticos relacionados com a vida do autor, seja o Museu Franz Kafka, a casa em que uma de suas irmãs morou, a réplica do sótão onde ele escreveu boa parte de sua obra, o rio em que ele nadava e o pedaço de grama onde ele gostava de se deitar depois do exercício. E Holland é de uma elegância ímpar ao “quebrar” o filme e levar o espectador décadas para o “futuro” em que Kafka foi objeto de estudos quase tão obsessivos quanto ele próprio fora com o uso de palavras e em que Kafka se torna um produto, com uma hamburgueria que leva o seu nome e, segundo consta (para turista sem discernimento, obviamente), mantém a receita original há mais de 100 anos e onde lembrancinhas com sua efígie são vendidas. É o Franz Kafka autor transformando-se no Franz Kafka da cultura pop que converteu seu sobrenome em adjetivo e que faz conexão direta dele com baratas mesmo sem saber exatamente o porquê. É também o lugar onde Kafka é reduzido a números e estatisticamente transformado em um prolífico influenciador de redes sociais (sim, há essa comparação que deve ter sido retirada de comparações feitas de verdade nos tours guiados por seu museu, porque as pessoas precisam disso para “entender” o quanto ele escrevia).

Franz antes de Kafka, que deveria ser Franz Sempre Foi Kafka, é uma biografia esperta, com uma grande atuação de Idan Weiss, com um roteiro de fazer inveja e uma direção muito inspirada de Agnieszka Holland que cria um retrato peculiar e, não resisto, quase kafkiano, de um grande escritor moderno que parece não se definir em seu passado, no seu presente ou mesmo em seu futuro. É, talvez, o que o roteirista e a diretora tenham procurado dizer, um homem desgarrado do tempo, que existe em todos os momentos e que marcou tanto “seus tempos” que ele conseguiu embrenhar-se de tal forma no imaginário popular que ele se tornou indissociável do cotidiano mesmo por aqueles que jamais leram uma palavra escrita por ele que não seja em citações soltas por aí. Talvez essa seja a marca de um grande autor, não sei.

Franz antes de Kafka (Franz – República Tcheca/Polônia/Alemanha/França/Turquia, 2025)
Direção: Agnieszka Holland
Roteiro: Marek Epstein
Elenco: Idan Weiss, Daniel Dongres, Jenovéfa Boková, Carol Schuler, Sebastian Schwarz, Katarina Stark, Peter Kurth, Ivan Trojan, Sandra Korzeniak, Aaron Friesz, Carol Schuler, Gesa Shermuly, Jan Budar, Josef Trojan
Duração: 127 min.

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