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Crítica | Kill Bill: The Whole Bloody Affair

Crazy 258!

por Ritter Fan
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  • spoilers.

Os Volumes 1 e 2 de Kill Bill, lançados com intervalo de seis meses entre outubro de 2003 e abril de 2004, foram originalmente concebidos por Quentin Tarantino como um longo filme único de mais de quatro horas de duração. Considerações comerciais bastante óbvias, diria, levaram o cineasta à decisão de fatiar sua obra da forma como ela acabou chegando ao cinema, criando duas fantásticas experiências cinematográficas que fizeram os espectadores acompanhar a jornada de vingança da Noiva, personagem vivida (e cocriada) por Uma Thurman, em obras tonalmente bem diferentes. Vale também lembrar que o lado comercial pesou em escolhas estéticas para diminuir o grau de violência para fugir da classificação etária mais alta, o temido NC-17 nos EUA (ou 18+ aqui) e permitir uma distribuição mais ampla, algo que se refletiu mais diretamente no corte de algumas breve cenas e a alteração da luta da protagonista contra os Crazy 88 para o preto e branco.

Mas quando Tarantino, certamente pressionado pela Miramax, escolheu quebrar sua obra em duas, ele não apenas tomou o caminho mais preguiçoso, até porque a decisão foi tomada com boa antecedência. Ao contrário, ele fez o possível para tornar os dois filmes, mesmo que evidentes partes de um todo, obras próprias, com desenvolvimento narrativo que primeiro nos apresenta à versão sanguinolenta, imparável e invencível da Noiva, para, então, no Volume 2, trabalhar mais a construção da personagem, com um gancho narrativo – o famoso cliffhanger que revela, no final do primeiro Volume, que sua filha está viva – que muda a percepção e a expectativa do espectador sobre a vingança empreendida. Mas Quentin Tarantino nunca deixou de chamar Kill Bill de um filme só, seu quarto longa mais exatamente, e, em 2006, ele finalmente mostrou ao mundo a razão para essa sua insistência.

Como muitos sabem, Pulp Fiction – Tempo de Violência, segundo filme do cineasta, estreou em Cannes, em 1994, e, não só isso, foi laureado com o prêmio máximo do festival, a cobiçada Palma de Ouro, o que efetivamente catapultou a carreira do cineasta. A Riviera Francesa foi também palco para Kill Bill: Volume 2 em exibições fora de competição em 2004, pouco mais de um mês após sua estreia nos EUA, marcando o retorno de uma obra de Tarantino para o festival responsável por projetá-lo. E, finalmente chegando ao ponto da presente crítica, dois anos depois, em 2006, o festival mais uma vez foi anfitrião de um filme “novo” do cineasta, Kill Bill: The Whole Bloody Affair, a versão unificada dos dois volumes que imediatamente tornou-se uma lenda moderna do Cinema em razão de sua inacessibilidade para além de algumas projeções isoladas posteriores, apesar de promessas reiteradas por Tarantino de que o longa seria lançado oficialmente em circuito cinematográfico e em vídeo doméstico.

Como todo mundo sabe, porém, esse lançamento nunca realmente aconteceu e The Whole Bloody Affair somente foi exibido um punhado de vezes no New Beverly Cinema, um cinema de rua de Los Angeles que Quentin Tarantino adquiriu em dezembro de 2007 para evitar que ele fosse transformado em um salão de beleza franqueado e que, desde então, tornou-se uma espécie de reduto onde filmes de toda sorte e de todas as décadas são projetados sempre em película (16 e 35mm) e onde celulares e smartwatches são abertamente odiados e terminantemente proibidos sob pena de banimento do espectador. Até onde consegui pesquisar, a primeira vez que a versão unificada de Kill Bill foi exibida no referido cinema foi por duas semanas a partir do dia 27 de março de 2011, com um repeteco interessante (e único) somente em 2015, ano de lançamento de Os Oito Odiados, em que o filme era um “prêmio” para quem, por oito semanas consecutivas, assistisse ali os oito filmes anteriores do diretor (contando os dois Kill Bill como dois dessa vez).

Sessão diurna e sessão noturna (em dias diferentes!).

Corta para 2025 e eu e minha esposa estávamos visitando nossa filha mais nova que faz faculdade em Los Angeles durante as férias de verão por lá em viagem alongadas para não a deixarmos muito tempo sozinha, já que todos os seus amigos – americanos e não-americanos – tinham voltado para casa e ela não queria vir para o Brasil em razão da política enlouquecida de um certo presidente alaranjado que vinha cancelando vistos de estudante na base do porque sim. Depois de levar as duas a algumas sessões variadas de filmes (de RoboCop a Ran, passando por Pecadores e Ninja Assassino, o de 1980) no New Beverly e também no The Vista Theater, o segundo cinema comprado por Tarantino, este bem maior e com capacidade de projeção em 70mm, eu caí na besteira de comentar para elas que só havia um filme que me faria pegar um avião para especialmente assisti-lo nos EUA se só lá ele estivesse disponível. Sim, vocês adivinharam, Kill Bill: The Whole Bloody Affair. Apesar de não acreditar em bruxas, cada vez mais tenho certeza de que elas existem, pois, poucos dias depois, completamente do nada, eis que o Vista Theater anuncia que, entre 18 e 28 de julho (com exceção do dia 23), haveria duas sessões diárias do referido filme. O problema? Bem, meu voo de volta estava marcado para bem antes disso…

Mas não tive dúvida: comprei os ingressos por precaução. Sim OS ingressos, como em dois dias diferentes, pois se eu fosse ficar para assistir esse filme, eu não iria assisti-lo apenas uma vez e, ao longo dos dias seguintes, eu revirei minha vida de cabeça para baixo de forma a conseguir permanecer nos EUA por tempo suficiente, o que significou mudar voos, reuniões, reorganizar trabalho e o diabo a quatro, com a sorte de o apartamento de minha filha estar ali disponível para minha estadia ainda mais esticada (obviamente que ela foi convocada a ir junto em pelo menos uma das sessões sob pena de ser deserdada). Porque sim, meus caros, eu fiz a insanidade de ficar por lá como havia prometido que faria e não somente porque havia prometido, mas sim porque eu realmente queria ver KBTWBA com todas as minhas forças.

Ah, vale dizer que tenho consciência de que existe um fan edit do filme que circula pela internet. Eu nunca o vi, mas sei que ele não é o filme em si, ou seja, não é a captura do longa como projetado por Tarantino em Cannes e, depois, em seu primeiro cinema. Trata-se mesmo de um fan edit, algo que, sinceramente, nunca tive interesse em assistir. Para mim, ou era a coisa verdadeira ou eu ficava com os filmes como eles estão amplamente disponíveis por aí, cortados em dois volumes mesmo. E, claro, existe a questão da experiência como um todo, pois, cinematograficamente falando, nada barra, para mim, o prazer que é assistir um filme no cinema sem interrupções, especialmente se a projeção for em película em um ambiente em que todos respeitam todo mundo e em que o projecionista cuida com extremo zelo de cada detalhe da projeção para ela ser a melhor possível para os espectadores, incluindo aí imagem, som e razão de aspecto da tela.

E as duas semanas de The Whole Bloody Affair foram festejadas e tratadas como um grande evento, com direito até mesmo à mercadorias oficiais específicas, como camisas e bonés indicando o lugar e as datas como se fosse uma turnê de uma banda de rock (passíveis de compra; não eram brindes), além de um mini-cartaz distribuído a todos aqueles que chegassem mais cedo na fila (sim, eu quebrei minha regra de não ficar em filas e fiquei feliz da vida por lá por mais tempo que precisava e ganhei minha edição limitada do cartaz devidamente numerada!). Em outras palavras: uma baita experiência cinematográfica que me fez ter certeza de ter tomado a decisão certa de estender minha viagem com tudo o que isso acarretou nas mais diferentes frentes, sejam elas profissionais ou pessoais.

A bilheteria e a vitrine interna customizada (reparem nos mini-cartazes que foram brindes).

Mas eu falei demais sobre tudo, menos sobre o filme em si e sei que vocês, leitores, se chegaram até aqui, já estão perdendo a paciência, pelo que, então, deixe-me mergulhar logo nos 258 minutos de projeção, com direito a interlúdio.

Para começo de conversa, diferente do que muitos podem imaginar, o subtítulo The Whole Bloody Affair não é oficial, mas sim, apenas, um apelido carinhoso. É um baita apelido bacana dado por Tarantino, mas não é, até prova em contrário,  o título do filme que, na tela é, apenas e tão somente, Kill Bill, com o “Vol. 1” aparecendo no primeiro intertítulo provavelmente por um erro ou pela impossibilidade, sem sua recriação custosa, de retirar a inscrição. Também diferente do que alguns acham – e eu já vi afirmações fabulescas nesse sentido -, KBTWBA não é uma remontagem na ordem cronológica da vingança da Noiva. Tenho para mim que isso sequer é realmente possível, por não haver material filmado suficiente para criar essas pontes narrativas, mesmo que, segundo consta – mas não está nessa versão que assisti – exista uma versão ainda mais alongada do anime de origem de O-Ren Ishii e uma cena com Michael Jai White. E, finalmente, vale destacar que a cópia do filme que assisti é exatamente a mesma projetada em 2006 em Cannes, incluindo as legendas em francês. Portanto, lá no fundo mesmo e sendo reducionista, KBTWBA é a costura pura e simples dos dois volumes que todo mundo provavelmente já assistiu inusitadamente adicionada de legendas em francês.

Mas Ritter, como assim? – alguns perguntarão. Bem, é quase isso. Como eu disse lá em cima, os filmes resultantes da decisão de dividir as mais de quatro horas originais do épico de vingança de Tarantino foram preparados para serem divididos, além de terem sua violência extrema reduzida para fins de classificação indicativa, pelo que sua unificação retorna a obra para a visão original do cineasta. E isso, na ordem em que tudo acontece, significa que:

  • O “provérbio Klingon” do começo do primeiro filme é substituído por uma homenagem ao cineasta japonês Kinji Fukasaku, responsável, dentre outros, pela octologia setentista The Yakuza Papers e por Batalha Real;
  • A sequência em anime sobre a origem de O-Ren Ishii é levemente estendida, ganhando momentos ainda mais sanguinolentos e explícitos;
  • A montagem da batalha da Noiva contra os Crazy 88 na Casa das Folhas Azuis conta com diversas tomadas diferentes, muitas apenas em ângulos diferentes, que tem o mesmo objetivo da extensão do anime mais longo, ou seja, ampliar a violência;
  • Essa mesma batalha é inteiramente em cores, já que o preto e branco foi usado principalmente para reduzir a impressão de violência por parte dos julgadores da Motion Picture Association. A versão em cores dessa luta não é exatamente uma novidade, já que ela consta do lançamento em vídeo doméstico do Volume 1 no Japão;
  • Há o uso de diversos outros pequenos takes alternativos ao longo de toda a projeção do Volume 1 para além da referida batalha;
  • Sofie Fatale sofre… hummm… mais intervenções cirúrgicas da Noiva;
  • Não há a revelação, ao final do Volume 1, de que a filha da Noiva está viva;
  • Há um interlúdio musicado de cinco minutos entre os volumes (nas minhas sessões, esses cinco minutos foram estendidos para 15);
  • Se o Volume 2 sofre alguma modificação, mesmo mínima, confesso que não notei.

Meu discreto boné e o interlúdio.

Sim, é “só” isso. Mas é um “só isso” que vale muito a pena, ainda que não mude a essência do que a maioria das pessoas experimentou vendo os dois volumes separadamente. Uma alteração, porém, é muito relevante em termos narrativos: a manutenção do silêncio sobre a filha da Noiva estar viva. Essa inserção faz todo sentido como cliffhanger de um filme para o outro, pois é um chamariz, um artifício para trazer o espectador de volta aos cinemas em seis meses. Em um filme único, porém, ele é desnecessário e uma distração que desarruma a narrativa por uma razão muito simples: o ponto de  vista de todo o longa (e dos dois longas nas versões originais também) é o da Noiva, pelo que quase tudo o que vemos (porque sim, há exceções como o xerife Earl McGraw investigando a capela e Elle Driver como enfermeira, mas essas cenas não afetam o desenvolvimento da Noiva), é de seu conhecimento e é seu olhar e suas memórias que comandam tudo. Em outras palavras, nós, espectadores, deveríamos, em linhas gerais, saber apenas o que ela sabe e, na versão “quebrada”, quando o Volume 1 acaba, “nós passamos na frente da Noiva” e sabemos algo que ela não sabe. Não é, aqui, uma questão de que, com isso, a surpresa se esvazia, mas sim de perspectiva, com apenas uma pitada de esvaziamento de surpresa, ainda que isso, para mim, seja irrelevante, já que a cena em que a Noiva vê sua filha pela primeira vez é soberba.

Acrescento que, quando há anos soube da existência de uma versão japonesa do filme com a luta na Casa das Folhas Azuis totalmente em cores, afirmei, com toda minha certeza e teimosia, que eu tinha certeza de que eu preferiria a versão em preto e branco, se tivesse que escolher. Tendo assistido KBTWBA, posso dizer, também com toda a minha certeza e teimosia que a sensação de violência nessa versão unificada pelo uso das cores e pelos takes diferentes é genuinamente maior e eu enxergo perfeitamente o que os chatos da MPA acharam “violento demais”, mas eu ainda prefiro a versão em preto e branco, pois ela é esteticamente fantástica, especialmente quando há o choque do retorno da cor e aquela sequência em contraluz azul toma a tela, abrindo espaço para a calmaria antes da tempestade no jardim nevado idílico em que a Noiva enfrenta O-Ren com aquelas cores escuras, mas marcantes como uma pintura a óleo.

Sobre a duração avantajada do conjunto da obra, tudo passou normalmente para mim, sem que eu sentisse o peso das mais de quatro horas. Claro que isso pode ter sido fruto de minhas expectativas altas combinadas com o fato de eu adorar os dois Kill Bill e de eu estar em um ambiente propício para apreciar a obra, mas eu vi o filme duas vezes e minha sensação na segunda vez foi idêntica. Tenho para mim que a chave para isso seja a diferença tonal entre cada uma das partes, com a primeira prezando pelo frenesi absoluto e, a segunda, pela calmaria intercalada de momentos únicos como o treinamento com Pai Mei, a fuga do enterro texano, a luta no trailer de Budd entre a Noiva e Elle Driver e, claro, todas as deliciosamente tensas sequências entre a Noiva e Bill, com direito a simpaticíssima BB, uma intepretação bacana sobre o Superman e, como não poderia deixar de ser, uma demonstração da Técnica do Coração Explosivo com a Palma de Cinco Pontos. Dito isso, eu entendo perfeitamente – mentira, perfeitamente não, pesarosamente – quem sentir comichão e não aguentar esse tempo todo sentado em uma cadeira sem mexer no celular.

Agora, depois de 19 anos, eu finalmente posso riscar KBTWBA de minha lista de desejos cinematográficos, lista essa que chegou a ter a versão completa de Metrópolis antes de ela ser achada (ok, a versão achada em Buenos Aires não foi 100% completa, mas é bem próxima), e o quase mítico O Outro Lado do Vento, resgatado pelo Netflix, mesmo que ainda faltem outros como a Trilogia Original de Star Wars sem quaisquer alterações (e não, as versões não anamórficas lançadas como meros extras em DVDs não contam, assim como também não contam os trabalhosíssimos fan edits), o renegado e rejeitado The Day the Clown Cried que eu tenho quase certeza de que existe em uma versão bagunçada, mas consertável, e o cancelado A Canção do Sul que, só por estar na minha lista já me coloca na lista de pessoas canceláveis, mas eu não ligo, além de outros que só existem em meus sonhos como Duna de Alejandro Jodorowski, Napoleão e diversos outros projetos de Stanley Kubrick e a versão original de O Homem que Matou Dom Quixote. Agora é aguardar que Quentin Tarantino cumpra o que prometeu um monte de vezes e lance essa versão épica de seu filme em outros cinemas pelo mundo e também em vídeo doméstico para a apreciação geral.

Obs: Se colocarem uma arma em minha cabeça me forçando a escolher entre os volumes separados e KBTWBA, eu… vou deixar que atirem… Não, brincadeira!!! Eu fico com os volumes separados, apesar de experiência cinematográfica com KBTWBA ter sido magnífica, uma das melhores de minha vida de chato que ainda gosta demais de ir ao cinema, esperar a luz apagar e mergulhar no que quer que seja projetado ali na minha frente.

Kill Bill: The Whole Bloody Affair (EUA, 2006)
Direção: Quentin Tarantino
Roteiro: Quentin Tarantino
Elenco: Uma Thurman, Lucy Liu, Vivica A. Fox, Daryl Hannah, David Carradine, Michael Madsen, Julie Dreyfus, Sonny Chiba, Chiaki Kuriyama, Gordon Liu, Michael Parks, Michael Bowen, Jun Kunimura, Kenji Ohba, Yuki Kazamatsuri, James Parks, Goro Daimon, Shun Sugata, Akaji Maro, Kazuki Kitamura, The 5.6.7.8’s, Sachiko Fuji, Yoshiko Yamaguchi, Ronnie Yoshiko Fujiyama, Jonathan Loughran, Sakichi Sato, Ambrosia Kelley, Yōji Tanaka, Issey Takahashi, Juri Manase, Ai Maeda, Naomi Kusumi, Hikaru Midorikawa, Stephanie L. Moore, Shana Stein, Caitlin Keats, Bo Svenson, Jeannie Epper, Chris Nelson, Samuel L. Jackson, Larry Bishop, Sid Haig, Laura Cayouette, Clark Middleton, Perla Haney-Jardine, Lawrence Bender, Helen Kim
Duração: 258 min.

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