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Crítica | Natal na Barca, de Lygia Fagundes Telles

Fluxo de consciência e atmosfera trágica dominam este conto natalino.

por Leonardo Campos
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Esqueça as habituais luzes, os momentos de alegria e animação, situados dentro de uma festa. Em Natal na Barca, emocionante conto de Lygia Fagundes Telles, o que prevalece enquanto conteúdo narrativo é a dor que toma os seus personagens, seja na posição de vítima de uma determinada tragédia ou testemunha do sofrimento alheio, numa história sobre tristeza delineada num espaço fúnebre, gélido, onde as experiências interpessoais de personagens femininas díspares, mergulhadas num clima de apatia que se diferencia do que por convenção se tornou a noite de comemoração em nosso calendário cristão. Nesta data de suposta felicidade, o que podemos contemplar é a força avassaladora das trevas, juntamente com o silêncio, algo que segundo a narradora, faz parte de suas predileções. Logo em sua abertura, a narrativa situa o leitor neste ambiente de pessoas emocionalmente distantes, circunspectas, aparentemente confortáveis em suas bolhas de solidão. O que soa é penumbra.  

Amordaçadas em suas individualidades, duas mulheres iniciam uma conversa sem grandes pretensões. Para uma, era o momento de dialogar e colocar para fora as suas dores. Para a outra, o som da voz e a transformação do momento num cenário de trocas era algo que a tirava de sua zona de conforto. Ambas se encontram numa embarcação descrita como tosca, sem a menor sensação de segurança. Mas, era necessária utilizá-la para a realização de uma travessia. No local, quatro passageiros: a narradora, um velho bêbado trajado com farrapos, um bebê silencioso e a tal mulher misteriosa que causava na expositora da história um misto de interesse por distanciamento, mas ao mesmo tempo, uma curiosidade que beirava ao mórbido. Era uma escura e fria noite natalina. O céu, a movimentação da volumosa água que atravessavam e o passo a passo de cada personagem é descrito em detalhes, numa estratégia narrativa que nos permite adentrar no clima do conto. Não demora para que a angústia se torne mais ampla.   

As personagens trocam breves olhares e experiências momentânea, até que a narradora decide manifestar um pouco de carinho pelo bebê que a sua interlocutora carrega. Percebe, por sua vez, que o ser humano silencioso e frio parece morto. Ele não respira. Desesperada, ela vivencia um momento de puro horror, descrito minuciosamente pela escrita formidável de Lygia Fagundes Teles, uma das mais grandiosas figuras da literatura brasileira, em especial, na composição de contos, geralmente curtos e muito objetivos, mas sem deixar de lado a complexidade filosófica que é marca de sua trajetória em nosso campo cultural desde meados do século XX. Para a personagem, aquela cena era algo terrível demais e nós, enquanto leitores, contemplamos de seu desespero, haja vista a maneira como a história vai do silêncio ao ensurdecedor desespero de sua narradora. Com sutileza, a mulher que a acompanha narra a morte do primeiro filho, o abandono do marido e a doença que acomete o seu filho mais novo. É desolador.  

No desfecho, por sua vez, temos um milagre. É o momento de renovação no caminho pavimentado pelas personagens. É o vislumbre de mudanças. Seria o milagre natalino? Sem pieguice, o conto flerta com elementos trágicos, mas encerra o seu panorama de tristezas com um feixe de dignidade e esperança para as figuras ficcionais presentes. A mulher de paraibana, ao trocar alguns poucos excertos de suas experiências com a narradora, promove um processo de transformação na vida da “outra”, num feixe de passagens intimistas, isto é, a considerável porção de dramas interiorizados em quem descreve a história, construídos num encadeamento de situações repletas de suspense, canalizado num espaço descrito com muito estranhamento, bem como a imersão de fatos do passado que se desdobram no fluxo de consciência habilmente estabelecido pela narração, intersecções com a memória que intensificam a história.  

Publicado em 1970, na coletânea Antes do Baile Verde, uma das mais interessantes da obra geralmente perspicaz e intensa de Lygia Fagundes Telles, Natal na Barca faz parte deste conjunto de contos intimistas, construídos dentro de uma atmosfera lúgubre, com reflexões sobre busca por algum resquício de fé na trajetória de vida de personagens de realidades díspares, mas a viver passagens únicas dentro da alusiva barca que atravessa um caudaloso rio numa noite natalina gélida, convidativa para reflexões. Tópicos temáticos como solidariedade, pobreza e descaso social também estão presentes nesta narrativa emocionante em primeira pessoa, num conto repleto de símbolos e linguagem que aposta em dualidades, tais como claro e escuro, frio e quente, noite e dia, elementos que colaboram com as intencionalidades da escritora na construção de sua narrativa que ainda me remeteu, propositalmente ou não, ao Mito de Caronte, aquele que os gregos descreviam como um barqueiro que transportava as almas para o “outro lado”, lembra?  

Natal na Barca (Brasil, 1970)
Autor: Lygia Fagundes Telles
Editora original: Companhia das Letras
7 páginas

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