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Entenda Melhor | Pelos Caminhos da Trilha Sonora

por Leonardo Campos
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Algumas trilhas sonoras se estabelecem como inesquecíveis. Como não se lembrar da assustadora música de Bernard Herrman para a cena de banho mais famosa do cinema? E o tubarão branco que se fazia presente com os ostinatos produzidos por John Williams, responsável por fazer várias pessoas com medo de tomar banho de mar? Aos que trabalham com temas motivacionais, geralmente conferem em palestras e peças publicitárias sobre o assunto, uma música com tons heroicos, “motivo” de um personagem corajoso e astuto, conhecido por Indiana Jones.

No entanto, como trilha sonora é um conceito amplo, difundido muitas vezes de forma equivocada; torna-se necessário ressaltar que além destas lembranças musicais, temos sons arrebatadores e que por conta da sua eficiência narrativa, nunca foram esquecidos por espectadores mais sensíveis. As facadas desferidas por Hitchcock em melões para extrair o som ideal para o assassinato do chuveiro em Psicose, as unhas da personagem possuída por forças malignas em Evil Dead – A Morte do Demônio ou a cigana que, também com as suas unhas sujas, faz-se presente numa cena através do tilintar numa mesa de escritório em Arraste-Me Para O Inferno, ambos do inventivo Sam Raimi.

Estes sons, juntamente com a música orquestrada ao longo das cenas de um filme, série ou videoclipe são partes integrantes da trilha sonora de uma produção. Devemos considerar que a trilha sonora é o conjunto de sons de uma peça audiovisual. Geralmente dividida em três segmentos sonoros, não é um campo que se propõe apenas a estudar a música, mas os sons em geral. Podemos pensar a trilha sonora pela tríade fala (diálogos), efeitos sonoros (sons ambientes, objetos, pessoas) e música (diversas modalidades).

No elucidativo artigo Trilhas: o som e a música no Cinema, Ney Carrasco, professor e coordenador do Programa de Pesquisa em Música da UNICAMP, afirma que por um longo tempo, a música aplicada ao audiovisual foi tratada como algo de menor importância, pois acreditava-se que “a música seria complemento do audiovisual, quando na verdade, já era parte de sua poética”. Com ramificação histórica que nos remonta ao período que se convencionou chamar de “cinema mudo”, época em que a música era executada durante a projeção, por um músico ou uma orquestra, a depender do nível da sala de exibição, a música foi a primeira manifestação sonora no cinema.

Tal como aponta Carrasco (2010), “parte de um processo de consolidação e formação”, pois quando o som se tornou um elemento sincronizado, a música continuou a ser utilizada. Ao passo que a linguagem do cinema evoluía, a música se manteve como articulação poética, parte de sua composição, não apenas como adereço. Em suma, temos aqui o que o teórico Michel Chion denominou de “contrato audiovisual”, isto é, “uma composição complexa percebida como uma unidade em que sons e imagens não se apresentam dissociados, mas como mensagem única”.

A articulação, conforme revela Chion (1950), se dá em dois níveis. Primeiro pela junção entre o dramático e o narrativo, através do uso da trilha para contar a história proposta. Ao se ligar aos personagens, espaços cênicos, situações, épocas e conflitos estabelecidos pelo roteiro, a trilha tem a tarefa de nos ajuda a identificar as características que definem a narrativa. Pode, inclusive, ser utilizada com associação a outra linguagem, tendo em vista complementar a informação para dar o arremate final no que tange aos aspectos da compreensão do que se conta. Veremos, mais adiante, como a iluminação azul, juntamente com a trilha sonora, nos faz mergulhar no denso ambiente onírico em De Olhos Bem Fechados, de Stanley Kubrick.

O segundo nível se dá pela relação entre os movimentos visuais e os movimentos sonoros. Imagens e sons são acelerados de acordo com o andamento da narrativa, assim como são desacelerados, a depender da necessidade dos envolvidos na produção em narrar determinado segmento de um filme. Isso não significa, por sua vez, tornar a música um elemento redundante da narrativa, pois os efeitos pretendidos podem ser adquiridos com a oposição a estes mecanismos estabelecidos por manuais de linguagem que determinam regras para a relação entre o visual e o musical. Mais uma vez, Stanley Kubrick pode ser citado, um cineasta que buscou subverter estas regras ao longo da sua carreira perfeccionista.

Na palestra Trilha Sonora e Audiovisualidade: estudo das funções sonoras e suas relações com a imagem, o professor Reinaldo Maia contou que desde os primeiros tempos, a música e o cinema tiveram uma forte ligação. Uma das explicações era que tinha como utilidade, compensar o silêncio dos filmes e mascarar o ruído do projetor e da plateia, ainda não habilitada aos códigos que pediam bons modos durante uma exibição fílmica.

Ao passo que a linguagem cinematográfica se desenvolvia juntamente com o efusivo século XX, muitos compositores de trilhas optaram por técnicas de condução para a associação entre música e imagens. Uma das mais conhecidas é o leitmotiv, palavra de origem alemã que pode ser traduzida por “motivo condutor”. Encaixam-se neste termo, Indiana Jones, Psicose e Tubarão, anteriormente citados. Tomado de empréstimo da ópera wagneriana, o termo designa basicamente um motivo musical temático que se conecta a um determinado elemento dramático do filme, utilizado pela produção de maneira decorrente.

Alguns leimotivs permaneceram marcos da história do cinema e ganharam vida fora das telas, em outras peças artísticas ou no imaginário do público. O Vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang, é considerado pelos historiadores como um dos primeiros usos desta modalidade de som temático. Intitulado I Dovregubbens Hall, o tema criado por Edward Grieg surge toda vez que o assassino aparece em cena para ceifar a vida de uma criança. Mais conhecido em inglês, sob o título In The Hall of The Mountain King, tal motivo condutor, reconhecido em muitas cenas pelo assobio do antagonista, é mais assustador que qualquer cena de violência explícita.

O leitmotiv é um elemento tão significativo para a indústria audiovisual que, em muitos casos, levou determinadas obras à posteridade. No Brasil, na seara das telenovelas, temos vários exemplos, tais como Pavão Mysteriozo, do cearense Ednardo, tema da cômica Saramandaia, além de Mistérios da Meia-Noite, de Zé Ramalho, tocada toda vez que o lobisomem atacava um personagem em Roque Santeiro.  A sua significação nos remete ao que Michel Chion denominou para a música no cinema, isto é, elemento responsável por descrever de forma resumida o principal sentimento de uma narrativa.
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Nos caminhos da trilha sonora: propostas analíticas

Em A Trilha Sonora, de Michel Chion, o autor apresenta um extenso painel de particularidades acerca do som no cinema, tendo destaque para a reflexão que aqui proponho, os efeitos empáticos e anempáticos, a dissonância audiovisual, a síncrese e o valor agregado. No que diz respeito aos “efeitos empáticos” e “anempáticos”, temos o primeiro quando a música adere ou aparentemente aderiu ao sentimento proposto pela cena, em particular, por sentimentos expressos pelos personagens. É o caso das cenas lacrimejantes de Titanic, de James Cameron, principalmente quando retrata as lembranças de Rose Dawson (Kate Winslet). Neste caso, a imagem e a música exacerbam reciprocamente a expressão pretendida, diferente do segundo caso, presente quando a música parece se mostrar indiferente ao que acontece durante a cena. Demarcada por certa regularidade de ritmo e razoável ausência de contrastes, busca ir de encontro ao que as convenções regulamentam. A cena em que Hannibal Lecter (Anthony Hopkins) mata um dos policiais enquanto uma música clássica adorna a cena é uma representação bem didática do “efeito anempático”.

Próxima ao efeito descrito anteriormente está a “dissonância audiovisual”, conhecida por ser uma estratégia poética particular, dotada de sincronismo ligeiramente deslocado ou incerto, propositalmente incluso na narrativa para efeitos dramatúrgicos desejados pelos realizadores. Um filme bastante conhecido por ir de encontro ás convenções é Blue, de Derek Jarman, de 1993, famoso pela sua tela azul fixa e guiado apenas por narrações, além do contemporâneo A Bruxa, de Robert Eggers, polêmico filme de horror lançado em 2016, responsável por dividir opiniões, pois juntamente com os elementos clássicos das trilhas aterrorizantes, os envolvidos na produção parecem seguir à risca o que Thomas Mann aponta em sua obra-prima Fausto, ao empregar vozes de uma maneira poucas vezes trabalhadas na composição de uma trilha sonora.

A “síncrese”, neologismo criado a partir da junção de síntese e sincronização é um efeito de ordem psico-fisiológica, considerado como natural ou evidente, momento em que dois fenômenos sensoriais e simultâneos (imagem e som) são percebidos imediatamente como parte de um só evento, procedente da mesma fonte. Um caso famoso é o efeito mickeymousing, conhecido pela sincronia absoluta entre animação e música, utilizado largamente pelos desenhos animados da Disney.  Outra concepção importante é a de “valor agregado”, isto é, “um efeito criado por acréscimo de informação, de emoção e atmosfera, conduzido por um efeito sonoro e espontaneamente projetado pelo espectador sobre o que ele vê”, assim, surge “como se esse efeito emanasse voluntariamente” (ibidem, pg. 23).

Para entender as tarefas da trilha sonora no tecido narrativo, cabe ao analisador um direcionamento, pois há amplas teorias sobre o assunto e muitos caminhos convergem para zonas que não dialogam entre si. De maneira geral, torna-se necessário compreendê-los, para mais adiante, escolher o caminho metodológico para análise. Um trabalho bastante elucidativo é o artigo A Trilha Sonora do Cinema: Proposta para um ouvir analítico, da pesquisadora e radialista Marcia Carvalho. Em seu texto há o resgate da Declaração sobre o futuro do cinema sonoro, de 1928, manifesto assinado pelos sovietes Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov, numa busca de defesa pelo contraponto entre som e imagem; além de A Arte do Som, de René Clair, documento que propunha a distinção entre “cinema falado” e “cinema sonoro”, reflexão que atualmente possui bastante relevância nas discussões sobre trilha sonora.

Conforme descreve Carvalho (2007), ao longo da história do cinema, diversos cineastas estabeleceram valiosas parcerias com seus compositores, tais como Nino Rota e Fellini; Herrman e Hitchcock; Prokofiev e Eisenstein, contatos de grande importância para a evolução desta linguagem artística em constante mutação. A presença de cineastas que nesta linha do tempo, investiram em trilhas sonoras instigantes também é um detalhe que pede observação e um “ouvir” mais analítico, afinal, é preciso dar o devido crédito aos criativos Alain Resnais, Glauber Rocha, Jean Renoir, Louis Malle, Orson Welles, Woody Allen e o perfeccionista Stanley Kubrick, diretor de maior interesse na reflexão em questão.

Para Carvalho (ibidem), há um lado do cinema que trata a linguagem sonora como mero acompanhamento musical, com procedimentos estabelecidos através de padronizações, e do outro, realizações mais inventivas. A pesquisadora não aponta caminhos certos ou errados, mas abre espaço para que possamos refletir as possibilidades de seguir um dos dois caminhos no que tange aos usos da trilha sonora no cinema, sem as fixações comuns aos livros que pretendem ser “manuais de boas maneiras” de uma linguagem caracterizada pela versatilidade e flexibilização.

A música, o efeito sonoro e a voz são elementos tratados pelos realizadores como correspondentes, mas cabe ressaltar que são dotados de papeis distintos na montagem do filme. Tendo como direcionamento as considerações de Santaella (2009), Carvalho (ibidem) divide a análise da trilha sonora no cinema em três segmentos: o “não-representativo”, o “figurativo” e o “representativo”, sem deixar de contemplar questões importantes como o silêncio e os ruídos, elementos que precisam ser levados em consideração quando estamos diante de uma análise fílmica.

O “não-representativo” predomina-se pela presença de qualquer tipo de música; o “figurativo” pelo efeito sonoro ou som ambiental, entre eles, passos, buzinas diversas, sinos, barulhos de motores, trovões, chuva, produzidos eletronicamente ou digitalmente; no caso do “representativo”, temos a predominância das vozes, dos diálogos entre os personagens, a locução de um narrador, etc.

Apesar da música se destacar pela sua potencialidade para a constituição da percepção do som no cinema, a ausência promovida pelo silêncio também possui caráter narrativo, pois também é capaz de delinear a força dramática de uma produção, tornando-se, inclusive, até mais significativo dentro de determinado eixo narrativo. A mesma coisa é a presença de ruídos numa realização audiovisual. Como reforça Carvalho (ibidem), é “uma das primeiras categorias do efeito sonoro, denominados como mistura de sons aleatórios e indistintos, sem harmonia, produzidos por vibrações irregulares”. Tratados como distúrbio ou perturbação, são sons que fomos acostumados a ignorar ao longo de nossas vidas, mas no bojo de uma narrativa, pode ter a tarefa ideal de representar uma disfunção. Casos clássicos podem ser ilustrados por Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos (o ranger das rodas do carro-de-bois) e Milagre em Milão, do italiano Vittorio De Sica (o latido de dois homens avarentos ao final de uma discussão sobre a posse de uma terra).

Por fim, mas não menos importante, temos a voz, elemento que corresponde ao nível da representação. Carvalho (ibidem) define-a como a manifestação sonora do corpo do ator, mesmo que ele não esteja representado visualmente. Neste quesito é importante atentar para o timbre, a entonação, a tônica e o ritmo das frases. De acordo com a tradição estadunidense, largamente utilizada ao redor do mundo, temos a voz off e voz over, muitas vezes confundidas: enquanto a voz off é usada para a um personagem de ficção que fala sem ser visto, mas está presente no espaço da cena, a voz over apresenta a descontinuidade da imagem e o espaço onde se emana a voz, tal como acontece na narração de documentários.

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