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Crítica | Bat-Man: Primeiro Cavaleiro

O resgate do Batman original.

por Ritter Fan
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Nada contra – ok, ok, um pouco contra sim – o Batman superpoderoso de hoje em dia, fruto da desvirtuação e exploração desmedida do sucesso de O Cavaleiro das Trevas, obra seminal de Frank Miller sobre o personagem, mas eu simplesmente adoro quando bons escritores se desafiam e voltam ao passado para resgatar um Homem Morcego mais humano, mais vulnerável, mais detetivesco, menos dependente de gadgets variados para livrá-lo de enrascadas e solitário, sem a cada vez maior e, sinceramente, cada vez mais sem graça bat-família. Em Bat-Man: Primeiro Cavaleiro, Dan Jurgens retorna para 1939, ano em que Batman nasceu em Detective Comics #27 pelo roteiro de Bill Finger e arte de Bob Kane para criar, ou melhor, recriar o Bat-Man daquela época – esse com hífen mesmo no nome -, com direito ao primeiro uniforme do personagem e uma história que utiliza de diversos elementos desse começo de carreira, inclusive a linha narrativa principal dos Homens-Monstro, que surgiu em Batman #1, de 1940).

Mas mais importante ainda que voltar às raízes do Batman, algo que Matt Wagner fez brilhantemente em Batman e os Homens-Monstro, de 2005/2006, é situar sua história efetivamente no ano em que ela se passa, com todas as questões sociopolíticas e econômicas do entreguerras, 10 anos após o Crash da Bolsa de Valores de 1929, cujas consequências gigantescas ainda eram amplamente sentidas e às vésperas da Segunda Guerra Mundial, com o pogrom antissemítico correndo solto na Europa e ganhando ecos nos EUA. É com esse pano de fundo naturalmente sombrio, mantido constantemente em destaque, vale dizer, que Jurgens erige sua Gotham City empobrecida, tomada de corrupção e com um inimigo misterioso conhecido apenas com A Voz, que, ao que tudo indica, revive prisioneiros executados na cadeira elétrica como monstros imbatíveis que obedecem suas ordens e a de seus lacaios, ordens essas que inicialmente levam aos assassinatos violentos de diversas figuras políticas importantes da cidade.

Nesse contexto, o playboy milionário órfão Bruce Wayne, amigo do Comissário de Polícia Jim Gordon, um dos únicos que resistiu à tentação do dinheiro sujo, passou a usar o traje de Bat-Man há poucas semanas, o suficiente para as autoridades e a população apelidá-lo de acordo e ficarem na dúvida se ele realmente existe ou se é só fruto de histeria coletiva e de que lado exatamente ele está. Mais ainda, ele faz todo o trabalho noturno sem a ajuda de ninguém, pois Alfred não existe nesse ponto de sua carreira, com a Mansão Wayne mais parecendo uma mansão assombrada e abandonada, mesmo com ele morando lá. Essa inexperiência e solidão do herói, que não tem batcaverna ou batmóvel, abre espaço para que Jurgens faça como Geoff Johns fez em Batman: Terra Um (ecoando Frank Miller, em Ano Um, claro) e explore o herói como um detetive mascarado com pés no chão que está começando a se entender e a entender de verdade o submundo da cidade que jurou proteger. Com isso, vemos não só um Bat-Man que apanha de verdade, chegando quebrado e repleto de hematomas em casa, ferimentos esses que ele precisa cuidar sozinhos, claro, como também alguém que ainda não decidiu exatamente como precisa agir, especialmente diante das ameaças sobre-humanas que A Voz solta sobre Gotham.

Algo que Jurgens esmiúça e que não me lembro de ver nesse nível de detalhes antes é o uso de armas de fogo pelo Bat-Man. Existe aquele eterno debate se o personagem deveria ou não usar essas armas, com diversas situações nos quadrinhos, inclusive nesse começo dele em 1939, em que revólveres, pistolas e até armas de maior vulto foram empregadas, com as mortes infligidas pelos herói ficando subentendidas. Em Primeiro Cavaleiro, Jurgens encara de frente o problema, estabelecendo um dilema. De um lado, Bat-Man afirma e reafirma que usar armas de fogo seria trair a memória de seus pais que foram mortos em razão do emprego de uma. De outro, temos Jim Gordon, com quem ele começa uma aliança hesitante diante da magnitude das ameaças, quase que implorando para Bat-Man municiar-se de armas de fogo justamente para ele ter chances maiores de não morrer em ação e, com isso, cumprir seus objetivos. É muito interessante ver o herói remoer o assunto, lidar com a tentação representada pela coleção de armas de fogo exposta em sua mansão e buscar ajuda externa para tomar uma decisão.

E são duas ajudas externas que Jurgens usa. Uma é Julie Madison, tradicional personagem da mitologia do Batman e seu primeiro interesse amoroso, criada ainda em 1939, em Detective Comics #31. Inicialmente uma socialite noiva de Bruce Wayne, Madison, aqui, é uma atriz que basicamente invade a Mansão Wayne para demonstrar sua indignação por Wayne ter cortado os fundos para o filme em que ela atuaria, algo que o milionário acaba revertendo. Na medida em que a história se desenvolve, Madison, que acaba descobrindo o segredo do playboy, trava uma longa conversa com ele sobre o emprego de métodos extremos e indaga se ele procura vingança ou Justiça. A outra ajuda externa vem de um personagem novo, o Rabino Cohen, criado especificamente para Primeiro Cavaleiro, que é um belíssima homenagem a Finger e Kane, ambos judeus, e que combina perfeitamente com o ambiente antissemítico de quando a história se passa – como a História se repete, não? -, com Batman estabelecendo laços de confiança com ele que o leva a revelar sua identidade e a procurar aconselhamento, o que faz de Cohen o mais próximo de um Alfred que essa graphic novel tem.

Não sou muito fã da escalada dos planos do misterioso vilão a partir da metade da terceira e última edição, pois tudo vai do micro ao macro muito rapidamente, com Jurgens tentando estabelecer paralelos com a Noite dos Cristais, ocorrida em 1938, mas falhando tanto na execução quanto na própria conexão em si, que não faz lá muito sentido e, de certa forma, até diminui a importância do grande marco persecutório dos judeus na Alemanha nazista. Mesmo assim, a história, que é fechada em si mesmo, mais do que dá conta de estabelecer esse novo velho Bat-Man como uma figura de esperança em uma Gotham City largada às traças, além de ser uma bela minissérie por seus próprios méritos.

E muito desse mérito vai para Mike Perkins que, com sua arte “suja” cria uma Gotham City dos anos 30 que é uma das melhores versões que já vi da cidade, bebendo de fontes variadas para criar um ambiente real, opressivo e naturalmente sombrio e pesado, algo que é refletido nos personagens, inclusive em Jim Gordon, outro facho de esperança nesse lodaçal urbano. O Bruce Wayne de Perkins é outro grande achado, pois ele o desenha como uma figura esguia, atlética, sempre portando figurinos claros e carros espalhafatosos, em um extremo e bem-vindo contraste com tudo ao redor, inclusive e especialmente com seu alter-ego, que ganha o que considero um dos melhores uniformes que já vi do Batman, inspirado, claro, pelo primeiro uniforme do personagem, com orelhas mais espaçadas e pontudas, a icônica luxa roxa pequena e um cinto de utilidades mais largo. Também acho excelente que Perkins mantenha o físico do Bat-Man sem maiores transformações, ou seja, ele é um homem musculoso, sem dúvida, mas sem exageros, sem ele ser basicamente um fisiculturista vestido de morcego.

Bat-Man: Primeiro Cavaleiro é um excelente trabalho de Dan Jurgens e Mike Perkins que retorna a algo que estava fazendo muita falta, ou seja, um Batman básico, sem firulas, sem bengalas narrativas cansadas e repetitivas que fazem do torturado personagem basicamente um deus invencível. Espero com todas as forças que a minissérie seja apenas a primeira de muitas nesse Elseworlds fascinante que traz uma época sombria como pano de fundo para o surgimento de um dos maiores super-heróis dos quadrinhos de todos os tempos. Queremos mais desse Batman com um hífen no meio e menos do ser imortal sem hífen que parece ser o padrão de publicações recentes.

Bat-Man: Primeiro Cavaleiro (The Bat-Man: Firsth Knight – EUA, 2024)
Roteiro: Dan Jurgens
Arte: Mike Perkins
Cores: Mike Spicer
Letras: Simon Bowland
Capas principais: Mike Perkins
Editoria: Matthew Levine
Editora original: DC Comics (DC Black Label)
Datas originais de publicação: 05 de março, 09 de abril e 21 de maio de 2024
Páginas: 154

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