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Crítica | Pocahontas (1995)

por Gabriel Carvalho
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“Às vezes, o caminho certo não é o mais fácil.”

Contém spoilers.

Branca de Neve e os Sete Anões, Cinderela e A Bela Adormecida são animações, certamente diferenciadas entre si, mais associáveis a outras épocas do que a atual. Depois de A Pequena Sereia e A Bela e a Fera mostrarem uma visão um pouco diversificada da empresa, mas sem grandes mudanças no olhar direcionado a personagens femininas, desenvolvendo, respectivamente, uma quebra com o patriarcalismo – os anseios do pai em relação a sua filha – e um amor muito mais profundo e compreensível – a paixão nutrida entre a Bela e a Fera -, os anos 90 introduziram as primeiras “princesas” Disney que não eram caucasianas, quebrando, portanto, grandes barreiras étnicas. O problema é que, com isso, o estúdio de animação também comprovou uma incapacidade de trabalhar competentemente, em uma primeira vista, essa transformação em seu núcleo de protagonistas, saindo das zonas de conforto usuais e entrando regiões desconhecidas. Por exemplo, para falar sobre uma mulher nativa americana, o roteiro de Pocahontas recorre a uma personagem dos livros de História, que, possivelmente, salvara a vida de um inglês ao se colocar a frente dele, prevenindo-o de ser executado pelo seu pai. O grande erro de Pocahontas, a animação de 1995, não é abordar uma história, com muitos aspectos trágicos, sob um olhar adaptado e, consequentemente, suavizado, ainda tirando, no final das contas, uma trama de amor do todo, mas aborda-la sem qualquer responsabilidade, temerosa em ser algo distinto.

Em primeiro lugar, nenhuma dessas histórias anteriores da empresa falavam sobre eventos reais. Além disso, mesmo adaptando contos de uma literatura existente, mudanças dos materiais originais para os materiais adaptados também sempre foram necessárias, tornando-os “adequados” ao olhar do público infantil. Em Pocahontas, a jogada da Disney, dessa forma, foi demasiadamente mais arriscada, por, além disso, também trabalhar sobre uma questão bastante sensível: a colonização da América. Os horrores são factuais. Mesmo assim, evidenciar, pela animação, as covardias cometidas pelo homem branco ao invadir o Novo Mundo, “descobrindo” a terra de outros, de fato era bastante possível, ainda mais nos termos de uma história de amor, algo que se coloca entre o bem e o mal, podendo criar conflitos interessantíssimos. Contudo, enquanto, superficialmente, observamos, na narrativa, pontuações de todos esses tipos, criticando, com suas ressalvas, a ganância do homem branco, a realidade desta produção cinematográfica é de um desentendimento do discurso que quer passar, quase como se fosse incompreensível, por parte dos realizadores, absorverem a narrativa do homem invasor, clamando serem suas as terras de povos que, distantes de uma bondade plena, ainda foram injustamente massacrados e relegados, tanto a um genocídio, quanto a um aculturamento, considerados incivilizados e selvagens. As poucas boas ideias de contraste existentes na animação não são suficientes para salvá-la.

Seguindo uma ótica dualista típica, a obra teria, teoricamente, antagonistas simples. A empresa é conhecida por isso, estabelecendo figuras vilanescas como Malévola, personagem extremamente cruel de A Bela Adormecida, ou, então, grupos do mal, porém burlescos, como os piratas de Peter Pan. Porém, quando vamos falar dos colonizadores, Pocahontas quer possuir um maniqueísmo certamente deturpado, com os roteiristas sendo malandros nesse ponto. O grande vilão da história é uma única pessoa e não um grupo inteiro, o que certamente alivia a culpa dos invasores, contando uma história equivocada para uma geração de crianças. O mais interessante seria, além de John Smith (Mel Gibson), apenas um outro personagem ou grupo pequeno ser responsável por mudar de lado nessa história. Por exemplo, mas sem querer, de maneira alguma, igualar as forças citadas, quando os nazistas são retratados no cinema, nunca pensaríamos em uma história, com intuito de quebrar o maniqueísmo, na qual os soldados se rebelam e apenas Hitler permanece sendo malvado. Pensaríamos, porém, em algo como um grupo de nazistas contrários aos ideais nazistas ou uma única pessoa, como o protagonista de A Lista de Schindler.  O que se aparenta de tudo isso é uma equivalência entre os nativos americanos e os britânicos, como se ambos fossem os “errados” da história e o amor salvasse tudo. Os roteiristas simplesmente quiseram aliviar a barra histórica dos ingleses, sem preocupação alguma com o felizes para sempre narrado, não mais esperançoso, mas ilusório.

No final das contas, quem são os selvagens da história? Os ameríndios ou os colonizadores? Nessa pontuação conflitante que aborda, Pocahontas se sai extremamente melhor do que na questão dos antagonistas, estabelecendo o bom selvagem, estereótipo comum da literatura, mas esboçando, ao mesmo tempo, uma desconstrução interessante dele, que permite uma ótica mais complexa do espectador perante o universo abrangido. A conexão existente entre este povo nativo americano e a natureza, presente em volta dele e também intrínseco a ele, é belíssima, enaltecida pela igualmente linda canção Colors of the Wind – grande ponto de um musical decente. Mesmo colocando essas pessoas para enxergarem-se como parte do que é natural e não superior ao restante dos componentes mundanos, o longa-metragem, em momento algum, decide transformar a população indígena em um conjunto incivilizado, muito pelo contrário. Em diálogos trocados entre Pocahontas (Irene Bedard) e John Smith, o significado de incivilizado é substituído pelo de diferente. Sendo assim, o olhar negativo é em relação ao homem branco, que não consegue entender seu espaço no mundo, olhando-o de uma maneira que o ego próprio é enaltecido em prol de uma supremacia destrutiva. Em um primeiro momento, é claro, porque, no final, o mal e o bem continuam a existir, mas de um modo dissimulado e sem-vergonha, com os realizadores colocando toda a história de sacrifício, do amor que vai além, de lado. Não existe sacrifício, porque ninguém abre mão de nada.

A história de amor, por outro lado, segue os padrões convencionais, sem grandes surpresas, mas também sem grandes problemas. Uma das únicas problemáticas reais é em relação a língua inglesa, não em decorrência do fato de Pocahontas aprende-la, algo que seria cabível, tanto para uma adequação do filme ao idioma dos seus realizadores quanto em uma interação mais facilitada entre ela e ele. O cerne da questão envolve uma confusão na criação do universo, visto que, ao mesmo tempo que os indígenas falam inglês, os ingleses, obviamente, também falam a língua. Porém, enquanto em Tarzan o inglês é claramente uma tradução linguística, permitindo os espectadores entenderem que, na realidade, os gorilas se comunicam como se comunicariam na natureza – evidenciado na primeira aproximação entre os humanos e os animais -, em Pocahontas isso não existe, resultando em uma solução narrativa mal resolvida. Mesmo assim, o espaço construído para o amor entre o colonizador e a indígena é decente, sendo que Pocahontas é quem ensina valores a John Smith e não o contrário, algo que resultaria em uma espécie de domesticação da personagem. Ao mesmo tempo, existe uma quebra no patriarcalismo em relação a Pocahontas, dada a sua recusa em se casar com aquele a quem ela foi prometida. Isso é interessante, embora, nesse meio tempo, o Chefe Powhatan (Russell Means) e demais personagens cumpram apenas funções narrativas, deixando-se, no caso do pai da protagonistas, levar por uma ignorância que, primeiramente, parecia não existir.

Por exemplo, Powhatan afirma que ouviria um dos homens brancos, deixando-o se posicionar, mas, assim que um dos seus é alvejado, desiste da ideia, mesmo não sendo John Smith o responsável pelo ato. Todavia, Pocahontas não quer falar realmente sobre qualquer um desses assuntos. Novamente, uma animação da Disney anseia em discursar sobre questões mais universais, como, no caso, os caminhos que escolhemos em nossas vidas. A presença da Vovó Willow (Linda Hunt) enriquece o cenário cultural da obra e o assunto é bem trabalhado, apenas quando a obra não está insistindo na dupla de animais da vez, composta por um guaxinim e um cachorro. Por fim, a animação como uma conquista técnica também é uma vertente observável, pois Pocahontas é visualmente lindo, com uma estética diferente de qualquer outra anterior. Entretanto, a decisão da empresa em abordar essa história, dessa maneira como abordou, prova-se frustrante, pois, enquanto outros filmes de animação podem resistir ao envelhecimento de uma pessoa, que ainda acreditará na magia de Pinóquio ou no amor de A Bela e a Fera quando adulta, Pocahontas é um longa-metragem que se desmonta facilmente, sem ser um vislumbre hipotético da harmonia entre dois povos, como poderia ser, mas a desarmonia de vários assuntos entrelaçados que fomentam uma narrativa na qual nenhum deles, com exceção do amor, é relevante. O caminho certo para esse filme não era esse, certamente o mais fácil.

Pocahontas – EUA, 1995
Direção: Mike Gabriel, Eric Goldberg
Roteiro: Carl Binder, Susannah Grant, Philip LaZebnik
Elenco: Irene Bedard, Mel Gibson, David Ogden Stiers, John Kassir, Russell Means, Christian Bale, Linda Hunt, Danny Mann, Billy Connolly, Joe Baker, Frank Welker, Michelle St. John, James Apaumut Fall, Gordon Tootoosis, Jim Cummings
Duração: 82 min.

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