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Crítica | Era Uma Vez em Hollywood – Um Romance, de Quentin Tarantino

por Ritter Fan
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  • Não há spoilers, a não ser na seção ao final claramente indicada como tal.

Para quem aprecia o trabalho do diretor, como é o meu caso, o lançamento de cada um dos filmes de Quentin Tarantino é um evento a ser comemorado. Quando ele anunciou que embarcaria também na literatura, algo relativamente raro entre cineastas, o impacto no mundo dos cinéfilos foi semelhante às estreias cinematográficas, ainda que sua escolha de trabalhar em uma adaptação literária – ou “novelização” – de seu mais recente longa, Era Uma Vez em… Hollywood, tenha sido razoavelmente decepcionante. Mesmo assim, era sem dúvida algo a ser comemorado.

As razões para a decepção – pelo menos no meu caso – são óbvias. A primeira e mais importante delas é que eu fujo como o diabo foge da cruz de novelizações. As únicas exceções que costumo abrir são para as adaptações dos longas da franquia Star Wars e mesmo assim só por uma questão de hábito. Normalmente, esses trabalhos são menores e, por não serem verdadeiramente independentes, já que é natural que os estúdios exerçam todo o tipo de escrutínio possível, o autor fica tolhido em sua liberdade. A segunda é porque ler material inédito de Tarantino carregava consigo um potencial realmente bacana e imprevisível como, aliás, são seus filmes.

Mas é claro que os dois pontos acima são compreensíveis e facilmente mitigáveis. Afinal, trata-se do primeiro romance do diretor e era mais ou menos natural que ele escolhesse transpor um de seus roteiros para a forma puramente literária. Um caminho certamente mais fácil (talvez até mais preguiçoso, se quisermos ser chatos), mas não menos interessante diante da possibilidade, amplificada pelo fato de o filme escolhido ser sobre Cinema e Televisão no ambiente de uma Hollywood sessentista, de Tarantino usar essa nova mídia para derramar toda sua pesquisa ao redor do longa e todo seu conhecimento pop-enciclopédico sobre o audiovisual como um todo. E, claro, estamos falando de uma novelização escrita pelo próprio roteirista, diretor e produtor do filme, o que deixa claro o espaço que ele teria para fazer o que bem entendesse com ela. Sobre material inédito, vejo da seguinte maneira: ele potencialmente geraria a expectativa de que um dia ele o adaptasse para o Cinema (ou até televisão, considerando alguns rumores por aí), o que poderia justamente tolher suas escolhas.

Portanto, ainda que inegavelmente o que temos com a adaptação literária de seu longa seja a expansão do roteiro que conhecemos, com algumas sequências que inclusive foram filmadas, mas cortadas na ilha de edição, ganhamos um vislumbre interessantíssimo do processo criativo e de pesquisa do diretor. E, para aqueles que acham que o livro é igual ao filme, já deixo aqui um aviso alvissareiro: Tarantino expande e desenvolve os personagens principais, notadamente Cliff Booth, Rick Dalton e Sharon Tate (nesta ordem) e alguns coadjuvantes que conhecemos como as hippies Pussycat e Squeaky e o líder delas Charles Manson, além do agente especializado em astros do passado Marvin Schwarz, isso sem contar com outros ainda, alguns com participação pequena como a atriz mirim Trudy Frazer e o protagonista de Lancer, James Stacy. Mais do que isso ainda, o diretor transformado em autor mexe profundamente com a estrutura narrativa de seu filme, o que não só traz novidades, como também um certo grau de estranhamento e, até mesmo, diria, problemas.

Em outras palavras, há muito o que ser visto e apreciado na adaptação, especialmente se o leitor souber apreciar de verdade a riqueza de referências cinematográficas, televisivas e também literárias que Tarantino oferece com muito mais detalhes que eu seu filme-homenagem à uma Hollywood ainda de certo modo inocente. Para quem não viu o filme, a história, que se passa primordialmente em 1969, gira ao redor de Rick Dalton, ator veterano que já passou do seu pico e, hoje, vive de fazer papeis de vilões nos mais variados episódios de séries de TV, e de seu melhor amigo, motorista, faz-tudo e dublê Cliff Booth, veterano da Segunda Guerra Mundial que perdeu seu espaço na indústria cinematográfica em razão de seu comportamento irascível e a desconfiança de muitos de que ele teria assassinato de sua esposa. Os dois são abordados por Tarantino tendo como pano de fundo a trágica história do culto de Charles Manson e o que acabou acontecendo, em agosto de 1969, com a linda Sharon Tate, então esposa de Roman Polansky, e outras pessoas, um marco que pode ser visto – e é assim que Tarantino encara – como o “fim de um era”.

O que Tarantino faz e que altera radicalmente a versão cinematográfica é adiantar o já famoso clímax para o primeiro terço do romance, em uma sequência surpreendentemente pouco detalhada e abordada no contexto do que um dia viria a acontecer com Rick Dalton, já que todo o presente do livro se passa em um intervalo de algo como 48 horas. O autor, portanto, faz sua própria versão da montagem não linear que marca tantos de seus filmes, pegando o leitor que esperava ler o que viu no longa completamente de surpresa. Claro que a pergunta que vem em seguida é, como então fica o final? Minha resposta, sem spoiler, é a seguinte: com uma conversa inédita ao telefone entre Rick e um personagem que permanecerá sem nome aqui, mas que é sensacionalmente bem desenvolvido no romance. Um pouco anticlimático, sem dúvida, para alguns decepcionante até, mas tenho para mim que funciona de certa forma, sendo um dos menores dos problemas da adaptação literária.

Porque sim, há problemas nela. O mais gritante deles é também, para cinéfilos, diversão pura. Como esperado, Tarantino derrama todo seu conhecimento sobre Cinema e Televisão em todo o momento que pode e de maneira muito mais detalhada do que no filme. Só para se ter uma ideia, o episódio piloto de Lancer, em que Rick é escalado como o  vilão Caleb DeCoteau, é destrinchado em seus mínimos detalhes e acompanhado de toda a contextualização possível sobre outras séries icônicas de faroeste, e isso sem contar com o detalhamento de Trudy e James, além de mais elucubrações artísticas do diretor Sam Wanamaker. Ainda mais interessante é a forma como Tarantino aborda a paixão de Cliff Booth pelo cinema não-hollywoodiano, acrescentando interessantes camadas cerebrais ao truculento personagem, na mais completa oposição a Rick Dalton, que, apesar de ser ator, pode ser considerado como um analfabeto cinematográfico. Cliff, logo no começo do romance, tem um capítulo dedicado justamente a esse ponto de sua personalidade, com Tarantino aproveitando para inserir sua paixão por Akira Kurosawa, sem perder a oportunidade de trazer detalhes sobre obras razoavelmente desconhecidas como o erótico sueco Eu Sou Curiosa – Amarelo, primeira parte de uma duologia.

No entanto, sendo bem sincero e colocando minha cinefilia de lado por um momento, é perfeitamente possível concluir que muito do que Tarantino faz nesse aspecto de desenvolver um pano de fundo cinematográfico extremamente detalhado parece, de um lado, “tiração de onda” e, de outro, essa ampliação narrativa oferece poucas ou nenhuma consequência ao desenrolar da história. Claro que posso defender aqui – e eu, na verdade, defendo, ainda que isso seja paradoxal com o que acabei de escrever – que Era Uma Vez em… Hollywood, seja o filme, seja o livro, é uma celebração de uma era muito mais do que uma história com começo, meio e fim e, como tal, essas pequenas homenagens de Tarantino são bem-vindas e até esperadas.

O que não é defensável é a maneira como é visível, em diversos momentos, que estamos lendo um roteiro ampliado de um filme que já vimos. Há diversas passagens que não são mais do que instruções de cena que Tarantino não consegue disfarçar e que distraem o leitor muito mais do que justificam sua existência. Além disso, algumas vezes há a troca da terceira pessoa onisciente, que nos permite dar pulos temporais por diversos momentos como é o caso da viagem à Itália de Rick e Cliff (na forma de um flashfoward, para ser mais exato), para uma primeira pessoa estranha referente ao personagem da vez que, novamente, dá a impressão de que algo do roteiro puro e original passou incólume pela editoria.

De forma semelhante, algumas sequências extras sabotam a narrativa. A mais evidente delas é um capítulo, ainda antes da metade do livro, em que Squeaky ganha foco, revelando inclusive sua conexão detalhada com George Spahn, dono do Rancho Spahn onde o culto de Manson vive. O problema disso é que, depois, mais lá para frente, quando Cliff dá carona para Pussycat até lá querendo, secretamente, saber se George está bem, o leitor já tem a resposta, e todo o suspense magistralmente construído no longa desaparece por completo. Finalmente, Tarantino afasta toda e qualquer dubiedade sobre seus protagonistas ao endereçar um elemento psicológico relevante sobre Rick (relevante no sentido literal, mas não no sentido literário, já que a informação não é bem utilizada) e muita coisa do passado de Cliff, inclusive aquela famosa questão sobre a esposa do dublê.

Como primeiro romance de Quentin Tarantino, Era Uma Vez em Hollywood foi uma baita escolha do diretor, não só por ser seu filme mais recente, como por ser o perfeito veículo para ele enxertar todo o seu verborrágico conhecimento sobre a cultura pop e sobre o Cinema e a Televisão. Há problemas, sem dúvida, mas se o leitor ingressar na leitura com o espírito correto, tendo na cabeça que o autor é Tarantino sem qualquer limitação de tempo e espaço, ou seja, tendo a oportunidade de ser ainda mais prolixo do que ele normalmente é, então será diversão garantida. Se eu leria outra adaptação por ele de algum filme de sua filmografia depois dessa experiência? Com certeza, ainda que eu sempre vá preferir um trabalho inédito. Quem sabe ele não se anima caso a vendagem de Era Uma Vez em Hollywood seja relevante e não parte para criar algo do zero?

Era Uma Vez os Spoilers

Se alguém tiver o interesse em ler o romance de Tarantino, sugiro parar a leitura da presente crítica aqui mesmo, sem se aventurar nos tópicos abaixo, pois eles abordarão as principais diferenças entre o filme e o livro. Em não havendo interesse em ler a obra ou se você não se importar com spoilers, então os comentários que seguem são para você! Vamos lá?

  • Além do gosto cinematográfico sofisticado de Cliff Booth, que ganha detalhamento no romance, Tarantino revela que ele é um herói de guerra que teve o maior número de mortes confirmadas;
  • Como se isso não bastasse, Cliff é confirmado como um assassino. Não só ele matou dois mafiosos que o estavam provocando durante um almoço, como ele também matou a esposa dele, quase dividindo-a em dois com um tiro de espingarda em seu barco. Ele se arrependeu logo em seguida, mantendo-a viva por sete horas até a Guarda Costeira chegar, mas ela não resistiu. Como ele considerou que seria um desperdício ele ir para a prisão, já que seu arrependimento pessoal era “castigo suficiente”, ele mentiu sobre as circunstâncias do assassinato, dizendo que tudo não passou de um acidente. Isso e seu status de herói de guerra permitiram que ele saísse incólume;
  • Ainda sobre Cliff, em sua estadia na França, depois da Guerra, ele contemplou a possibilidade de se tornar um cafetão, desistindo quando, ao conversar com cafetões franceses, ele descobriu que a profissão exigia demais deles;
  • A famosa luta de Cliff contra Bruce Lee no filme, que até hoje é objeto de controvérsia, ganha mais contornos no livro, não só pela personalidade psicopata de Cliff ser mais aprofundada, como também pela sua estratégia na luta para deliberadamente enganar o artista marcial;
  • Charles Manson ganha mais detalhamento, especialmente sua característica de cafetão e sua tentativa de se tornar músico, que inclusive levou uma de suas composições a fazer parte de um álbum dos Beach Boys. Tarantino faz questão de revelar que todo seu discurso cultista que encantou seus seguidores teria sido largado em um estalar de dedos caso ele tivesse conseguido emplacar no show business;
  • Brandy, a cadela de Cliff, foi uma espécie de presente de um amigo do dublê que devia dinheiro a ele. Ela foi levada para ele como uma promessa de que ela era campeã em luta de cachorros, algo que os dois fizeram por um tempo, até o amigo insistir em fazer uma Brandy ferida lutar uma última luta de forma que eles pudessem apostar contra a cadela. Isso levou Cliff a cometer seu primeiro assassinato, de seu próprio amigo, ficando com Brandy desde então;
  • Rick Dalton é diagnosticado por Tarantino como bipolar. No entanto, esse aspecto não é desenvolvido na história;
  • Ainda sobre Rick, o texto indica que ele viveu no mínimo até 1999, já que Trudy, a atriz-mirim que ele conhece no set de Lancer, concorre ao Oscar por três vezes sem jamais ganhar, mas é dito que Rick torceu por ela todas as vezes;
  • A conversa telefônica que encerra o livro e que mencionei misteriosamente no texto é entre Rick e Trudy, já que a menina liga para ele à meia-noite do dia em que eles teriam uma outra cena em Lancer para ter certeza de que ele estava ensaiando, com os dois fazendo um ensaio telefônico que aprofunda a conexão entre os dois, com Tarantino perigosamente resvalando em um incômodo aspecto amoroso, mas sempre por parte de Trudy, nunca de Rick.

Era Uma Vez em Hollywood (Once Upon a Time in Hollywood: A Novel – EUA, 2021)
Autor: Quentin Tarantino
Editora original: Harper Perennial
Data original de lançamento: 29 de junho de 2021
Editora no Brasil: Editora Intrínseca
Data de lançamento no Brasil: 29 de junho de 2021
Tradução: André Czarnobai
Páginas: 560

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