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Crítica | Noé – A Graphic Novel Completa (2014)

por Luiz Santiago
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Durante a preparação para o lançamento do filme Noé (2014), o diretor Darren Aronofsky fez um processo de decupagem imagética/storyboard diferente. Com a intenção de tranquilizar o estúdio e os produtores em relação à obra que estava realizando, o cineasta condensou o roteiro ao lado de Ari Handel e convidou o excelente Niko Henrichon para desenhar o que seria o projeto visual do filme. Nascia assim a graphic novel Noé, que teve o Livro 1, Por Causa da Maldade dos Homens, lançado no primeiro semestre de 2013 e a graphic novel completa, com os 4 livros temáticos, no início de abril de 2014.

É importante ter em mente que o ponto de partida para a GN em questão foi o filme, o que ajuda a entender certos caminhos narrativos que o roteiro nos apresenta, a forma de adaptar o famoso episódio bíblico e o entendimento ou interpretação que se pode ter dele. O único ponto inteiramente independente de amarras é a arte, que a cargo de Niko Henrichon, se sobressai facilmente como a melhor coisa de todo o volume.

Dos quatro livros que compõem a obra, o único irretocável é o primeiro. Nele, temos a revelação do dilúvio a Noé, a relação dele com sua família e com Deus, demonstração dos dois maiores pecados que fizeram com que o Criador quisesse destruir tudo na Terra (violência e concupiscência) e todo o caminho percorrido até o encontro com os gigantes, a reveladora conversa com Matusalém, o milagre imediato para a construção da arca. Ou seja, toda a base de sustentação do evento (o capítulo 6 do Gênesis) está no Livro 1, e de uma forma tão bem escrita e desenhada que é impossível não gostar.


O início da chuva. A grande batalha pela arca.

O problema vem nas edições posteriores, que abordam o restante da construção da arca, o embarque dos animais, a luta pela embarcação, o conflito de Noé com os filhos mais velhos, o dilúvio em si e o “novo mundo”. Ou seja, em um tomo, tivemos um único capítulo do Gênesis retratado. Nos três tomos seguintes, Aronofsky e Handel adaptaram os capítulos 7 a 10 do Gênesis, o que evidentemente nos coloca um problema de espaço e supressão de coisas que poderiam fazer a graphic novel ganhar uma configuração diferente.

O que nos impressiona de imediato é o foco da narrativa. É claro que se trata de uma adaptação e, com isso, temos o fator de interpretação e visão de mundo a levar em conta. O roteiro não foca no quesito de extermínio que Deus assume no episódio e que faz valer através de Noé, que tem na consciência o fato de ter matado, sob ordens, toda a humanidade para “um bem maior”, ironicamente, um “bem maior” composto por filhos que atentaram contra sua vida mais de uma vez; filhos que não tinham boas relações com ele e recomeçaram tudo aquilo que o passional Criador quisera exterminar da Terra pouco tempo depois de iniciada a “nova vida” após o dilúvio.

Em um ponto ou outro da história, o texto traz à tona o comportamento emotivo de Deus para com os homens. A própria Bíblia não faz questão de esconder isso, dizendo que “Então, arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem sobre a terra, e pesou-lhe em seu coração“. O mesmo Deus que se comportara expulsando suas criações iniciais do Paraíso, vê agora o resultado de sua ação passada. O mundo está cada vez pior. E o que ele faz? Extermina todos, menos oito. O que acontece em seguida? Tudo de novo, e não muito tempo depois, se bem que de forma inicialmente mais sutil, como no episódio da Torre de Babel, no capítulo 11 do Gênesis e depois, de forma mais bruta, no episódio de Sodoma de Gomorra, no capítulo 19 do Gênesis. Aronofsky e Ari Handel não chegam a avançar a tal ponto da história bíblica, mas deixam nas entrelinhas a discussão sobre a utilidade prática do Dilúvio (e aqui estamos assumindo que ele de fato aconteceu nos moldes bíblicos, ok?). No final das contas, se era para matar todo mundo de novo e várias vezes, inclusive instituindo a condenação eterna, para quê salvar oito pessoas? Sadismo?

Quando chegamos no Livro 3, percebemos que o peso de toda a história recai sobre Noé. Tendo em mente ordens divinas que passava a questionar, ele vê toda sua família ir contra a postura adotada naquele momento, acreditando-o louco. A irracionalidade em cena é tamanha que incomoda o leitor da maneira mais negativa possível, no plano mora. A discussão gerada a partir daí é pontuada de interrogações, algumas delas vindas do próprio protagonista da história.

Niko Henrichon imprime sua marca de maneira sublime, através da arte, com o mesmo nível de detalhes para quadros em vários ângulos e planos possíveis — exercício também visto em Os Leões de Bagdá. Seu sexteto de páginas sobre a criação do mundo, Adão e Eva no Paraíso e o assassinato de Abel são belíssimos e, no caso do episódio da criação, tem uma inteligente incursão evolucionista que me fez rir cm gosto. Só um bom artista conseguiria mesclar elementos de duas concepções distintas de uma forma que não fizesse uma ou outra parecer a “vilã da vez” e de maneira visualmente orgânica e com um grande número de detalhes. Em uma das páginas, quando há a mostra da vida no mar, há uma grande fita de DNA, adicionando uma bem-vinda carga de genética a toda verborragia em cena naquele momento. Há também tem uma ótima posição do processo evolucionista (simplificado, é claro, mas ainda assim, muito válido).

Unindo esforços de dois lados, era de se esperar que Noé fosse uma graphic novel no mínimo interessante. E é. O erro vem na forma abrupta com que é terminada, a passagem do episódio pré terra seca para o final do capítulo 9 do Gênesis, que conta a história da vinha de Noé, sua bebedeira e mais um episódio deplorável com seus filhos — como é possível que um homem que andava com Deus (a Bíblia quer dizer com isso que ele tinha plena comunhão com Deus, não que passeava de mãos dadas com Ele) fosse capaz de criar/educar rebentos tão desprezíveis, principalmente Canaã, o pior de todos?


Um mundo novo? Após o dilúvio, Noé planta uma vinha, fica bêbado (certo ele! Com uma família daquelas!) e um de seus filhos…

A leitura de Noé é divertida, nos deixa apreensivos, com raiva e reflexivos. Escusa-se explorar o lado de que se trata de uma adaptação bíblica e que é evidente que algumas licenças poéticas e mesmo narrativas ou conceituais foram tomadas pelos autores para fazer valer a história. Particularmente gosto muito desse episódio bíblico e achei bastante respeitosa e interessantíssima a interpretação de Aronofsky e Handel para o evento. Há um tropeço no ritmo final da história, mais por condensação do que por outra coisa, todavia, o produto final é positivo. Desde o Gênesis, de Robert Crumb eu não lia nada tão interessante baseado na Bíblia e devo dizer que valeu a espera. Quem não leu Noé, leia.

Noé (Noah) – Estados Unidos, 2014
Roteiro: Darren Aronofsky, Ari Handel
Arte: Niko Henrichon
Editora: Image Comics (EUA)
265 páginas

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