Diante de um panorama audiovisual onde histórias de super-heróis se multiplicam e criam algo próximo a uma franca rejeição de parte do público adulto, a chegada de uma nova adaptação de Watchmen, em dois filmes-capítulos que copiam o original, me parece um contrassenso. Dirigida por Brandon Vietti e escrita por J. Michael Straczynski, a animação provoca um misto de curiosidade e perplexidade, propondo-se recriar, com fidelidade reverente, o universo sombrio e intricado dos vigilantes aposentados em um Estados Unidos alternativo de 1985. Contudo, a escolha de seguir tão de perto o original de Alan Moore e Dave Gibbons, embora demonstre um cuidado admirável, deixa uma dúvida chata: qual o sentido de revisitar um projeto já tão explorado sem arriscar um passo além? A produção não carece de qualidade — o trabalho do Studio Mir na animação e o elenco de vozes, com nomes como Matthew Rhys e Katee Sackhoff, garantem um bom acabamento —, mas sua insistência em se manter colado à minissérie de 1986-1987, já previamente adaptada em filme, motion comic, mocumentário, spin-off e série de TV, faz com dessa versão de 2024 uma mesquinhez nostálgica, sem criar algo que valha a pena em larga medida – afinal de contas, transliteração por transliteração, qualquer pessoa com um cérebro em pleno funcionamento preferiria reler o quadrinho!
A narrativa, que acompanha a investigação de Rorschach sobre o assassinato do Comediante e os desdobramentos entre os heróis banidos, é conduzida com competência, mas é irremediavelmente redundante. A boa dublagem captura a essência dos personagens — Titus Welliver, por exemplo, entrega um Rorschach cru e perturbador —, e os visuais conseguem ecoar o traço marcante de Gibbons, consultor do projeto. Ainda assim, a falta de ousadia criativa pesa, sobretudo no segundo capítulo, quando o ritmo se arrasta e a trama não oferece um novo ângulo para os dilemas morais ou as tensões geopolíticas que tornaram a obra original um marco. Diferentemente da série da HBO de 2019, que reposicionou os eventos de Watchmen em um contexto moderno para abordar questões como racismo sistêmico e abuso de poder, esta animação prefere se ancorar inteiramente no passado. O resultado é uma experiência que agrada pela familiaridade, mas frustra pela ausência de um propósito que vá além da mera transposição do papel para a tela.
Vale destacar que certos instantes conseguem reacender o fascínio pela história, como os flashbacks com o passado tortuoso dos heróis desse Universo (eu adoro os Minutemen!) ou as sequências que recriam a atmosfera opressiva de um mundo à beira do caos nuclear. Essas passagens, carregadas de um peso dramático herdado diretamente da minissérie, têm força suficiente para envolver o espectador, mas é difícil atribuir esse mérito à equipe criativa do filme. O impacto vem mais da potência intrínseca do texto de Moore e Gibbons do que de qualquer inovação trazida por esta adaptação. Aí vem a pergunta: por que não explorar territórios menos seguros, como uma releitura de Antes de Watchmen, que, apesar de polêmicas, poderiam injetar novidade ao Universo? Escolhendo uma abordagem tão conservadora, a animação se coloca numa posição incômoda, competindo com versões anteriores que já esgotaram boa parte de seu potencial narrativo e visual, sem trazer um contraponto que justifique sua existência em um mercado já saturado.
Chegamos a um ponto onde é necessário sair da zona de conforto. Esta versão de Watchmen não é ruim — sua execução é sólida, e os fãs mais milimetricamente insuportáveis vão encontrar um colossal prazer em ver o quadrinho “xerocado” na tela —, mas sua falta de ambição reflete um cansaço maior do gênero. Enquanto o público mais crescido pede por histórias mais desafiadoras e que tragam relevância contemporânea (sem forçação de barra), esta animação escolhe um caminho manjado, agarrando-se a um “passado glorioso” que, na tela, vindo de uma produção contemporânea, se torna constrangedor. Fidelidade cega e construção engessada em prol de um legado artístico é também um caminho para um resultado patético. Que sirva, pelo menos, de ponto final para empreitadas do tipo, e que, pelos próximos 50 anos, nenhum estúdio queira voltar a adaptar Watchmen.
Watchmen – Capítulo I e Capítulo II (Watchmen: Chapter I — Chapter II) — EUA, 2024
Direção: Brandon Vietti
Roteiro: J. Michael Straczynski (baseado na obra de Alan Moore e Dave Gibbons)
Elenco: Troy Baker, Adrienne Barbeau, Corey Burton, Michael Cerveris, Jeffrey Combs, Grey Griffin, Kelly Hu, John Marshall Jones, Max Koch, Phil LaMarr, Yuri Lowenthal, Geoff Pierson, Matthew Rhys, Katee Sackhoff, Dwight Schultz, Jason Spisak, Kari Wahlgren, Rick D. Wasserman, Titus Welliver, Zehra Fazal, Phil Fondacaro
Duração: 83 min. e 90 min.