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Crítica | Mar Verde

por Ritter Fan
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estrelas 4

O segundo longa-metragem da carreira de Elia Kazan é um western muito interessante, que mistura uma ranch story com uma empire story, abordando duas eras da expansão americana para o oeste (uma delas referencialmente apenas) e estendendo-se ao longo de décadas. Mas Mar Verde é, acima de tudo, uma tragédia clássica, uma fita lúgubre e triste, que não deixará o espectador sair com qualquer semblante alegre no rosto.

A mistura de eras é o que mais chama a atenção, apesar da presença constante de grandes atores: Katherine Hepburn e Spencer Tracy. Kazan constrói sua narrativa a partir de um roteiro de Marguerite Roberts e Vincent Lawrence (por sua vez baseado no romance homônimo de Conrad Richter, de 1936). A fita começa em 1880, quando a chamada “fronteira” já está fundamentalmente dominada, 15 anos depois do final da Guerra de Secessão. Essa dominação se deu pelos primeiros colonos expansionistas, representados, no filme, pelo Coronel Jim Brewton (Spencer Tracy) apresentado, espertamente, como o vilão da história, por dominar a região com seu gado e o poderio econômico que vem a partir daí. Nós o vemos, primeiramente, em um tribunal, lutando contra um pobre colono de segunda geração que deseja se fixar no território e iniciar o plantio.

A vilania de Brewton, porém, é quase que imediatamente relativizada, pois ele, em um breve discurso depois de ganhar a causa, dando a entender que o juiz está no seu “bolso”, deixa clara sua posição em relação aos “novos colonos” que, segundo ele, só estão lá para se aproveitarem do sangue, suor e lágrimas dos primeiros desbravadores (que tiveram que lutar contra uma terra inteiramente selvagem) e para destruírem a mãe-natureza, transformando pastagens naturais cheias de grama (o “verde” do título em português que, em inglês, é, literalmente, “mar de grama”) propícias à criação extensiva de gado em enormes plantações que tendem a destruir o rico solo. Logo de imediato o roteiro quer que o espectador pare para pensar se a posição de Brewton, oposta a seu inimigo mortal local, o promotor público (e, depois, juiz) Brice Chamberlain (Melvyn Douglas), não seria razoável, apesar de seus métodos, digamos, pouco ortodoxos. Reparem como o discurso é convincente e como, com a chegada de Lutie Cameron (Katherine Hepburn, belíssima), ele se torna ainda mais filosófico, com Brewton levando sua noiva a seu isolado rancho, cuja jornada serve para mostrar a beleza selvagem do local e o amor verdadeiro que aquele que percebemos como vilão no início tem pelo “mar verde”.

Lutie, por sua vez, é uma aristocrata de St. Louis, onde o filme começa, dando-nos um vislumbre da chamada civilização. Ela está prestes a se casar, quando recebe a notícia de que seu noivo – Brewton – não poderá comparecer e pede que ela vá ao encontro dele. É assim que ela, vestida como uma rainha em plena Salt Fork, no Novo México, cidadezinha típica de “filmes de cowboy” encontra seu prometido no tribunal. Os conflitos de posicionamentos e de criação são mais do que evidentes, mas Lutie gosta realmente de Jim e vice-versa. São opostos que se atraem fortemente, belamente, mesmo que ela sinta ciúmes da fascinação dele pela grama verdejante e que ele não compreenda como ela pode não sentir o mesmo pela terra virgem, intocada.

Essa tensão entre o novo e o velho, o passado e o futuro acaba, dentro da narrativa, atraindo um terceiro vértice para o que acaba sendo um triângulo amoroso. Brice Chamberlain, desde o primeiro minuto, mostra interesse sincero por Lutie e a relação dos dois acaba catalisando a tristeza profunda dos três, levada adiante, na geração seguinte, pelos filhos de Lutie, Sarah Beth e Brock, que vemos nascer (e que a montagem trabalha interessantemente, de forma a evitar nos mostrar as gravidezes – ouvimos a notícia e, ato contínuo, o bebê, mas com uma clara e natural passagem de tempo), crescer e se tornarem adultos.

Há um evidente tom épico, de gerações, na fita de Kazan e essa passagem de tempo é sempre muito bem conduzida por uma direção equilibrada, inteligente e um roteiro que sabe inserir informações importantes no momento certo, evitando que o espectador se perca ao longo do tempo. O que pouco funciona é o trabalho de maquiagem aplicada aos atores. Eles não envelhecem, não nos fazendo sentir a passagem do tempo no corpo, somente no ambiente.

O que gera estranheza muito mais do que a aparente eterna juventude dos personagens é terceiro terço da fita, quando a situação sem volta já está estabelecida e há uma separação dos personagens principais. Nesse momento, somos apresentados a Brock adulto (vivido por Robert Walker) quase que como um completamente novo personagem dentro de uma estrutura que já contém suficientes personagens. Ele é importante para o momento de catarse, não se enganem, mas sua presença na fita soa forçada, exigindo maior exposição por meio de diálogos (na verdade, Kazan usa narração em off com o artifício de troca de correspondência entre Doc, vivido por Harry Carey e Lutie e, depois, entre ela e Brice).

A partir desse ponto, tudo começa a soar pouco natural e apressado, como se o diretor e os roteiristas tivessem esquecido que o filme precisava terminar, já tendo investido muito tempo no que acontece antes. Faz parte da qualidade épica da obra, mas Kazan acaba metendo os pés pelas mãos ao nos empurrar goela abaixo “novos” personagens e um novo status quo para Salt Fork, para os novos colonos e para Jim Brewton. Poderia ter funcionado bem caso a duração da fita tivesse sido maior, com mais tempo para a maturação de ideias e menos mudanças que parecem repentinas (mas não são).

O próprio Kazan, na verdade, não gostou do resultado final e até fez uma espécie de campanha de “auto-boicote”, mas as razões para o desgosto do então ainda iniciante diretor se dá muito mais pela posição irredutível do estúdio, que economizou nas filmagens em locação, forçando o uso de sobreposição de imagens de estoque e, também, nos figurinos de Lutie. Muito sinceramente, em termos de figurino, o filme é altamente eficiente e essa crítica de Kazan não procede além de seu preciosismo. No tocante à sobreposição de imagens, ela realmente está presente e teria sido mais interessante, sem dúvida, a filmagem em locação, mas esse aspecto está longe de prejudicar o resultado final.

O que realmente atrapalha é assistirmos a uma maratona cadenciada ao longo de 90 minutos somente para vermos uma corrida desordenada de 100 metros rasos nos 30 minutos finais e com personagens fundamentalmente diferentes daqueles que fomos apresentados ao longo da corrida. É perfeitamente possível ver o que Kazan e os roteiristas pretendiam passar, mas não há como não torcer o nariz para essa mudança brusca de ritmo para fechar a narrativa.

Mesmo com esse problema, Mar Verde funciona como a tragédia proposta, pois Kazan consegue dar relevância a seus personagens principais, de forma que ficamos preocupados por seu destino e conseguimos simpatizar e sofrer com a odisseia deles e, principalmente, com as causas de que defendem. Hepburn e Tracy, em sua mais famosa e lucrativa parceria, apesar de definitivamente não ser o mais chamativo trabalho dos dois dividindo a tela, ajudam no que sentimos por eles e, quando o filme finalmente chega a seu fim, identificamos o movimento circular e o fechamento efetivo da vida desses personagens.

Mar Verde (The Sea of Grass, EUA – 1947)
Direção: Elia Kazan
Roteiro: Marguerite Roberts, Vincent Lawrence (baseado em romance de Conrad Richter)
Elenco: Katherine Hepburn, Spencer Tracy, Robert Walker, Melvyn Douglas, Phyllis Thaxter, Edgar Buchanan, Harry Carey, Ruth Nelson, William ‘Bill’ Phillips, Robert Armstrong, James Bell
Duração: 123 min.

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