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Crítica | O Encouraçado Potemkin

por Luiz Santiago
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Segundo e mais importante filme dirigido por Sergei EisensteinO Encouraçado Potemkin estreou na União Soviética em dezembro de 1925, no mesmo ano de A Greve (exibido em abril), obra que marcou a estreia do diretor em longas-metragens. Inspirado em um motim real que aconteceu no couraçado em junho de 1905, resultado de dois grandes eventos políticos que agitavam o Império Russo naquele ano — a Guerra Russo-Japonesa e a insatisfação e rancor populares após o massacre do Domingo Sangrento, em 22 de janeiro, na cidade de São Petersburgo), O Encouraçado Potemkin é de tudo um pouco: obra de propaganda política, relato histórico, dramatização da “história das massas” e mais um capítulo do “cine-punho” de Sergei Eisenstein.

Sim, Potemkin é tudo isso. E também era o filme favorito de Charles Chaplin, Billy Wilder e Elia Kazan (vide Battleship Potemkin: The Film Companion, de Richard Taylor); o filme cuja mais famosa cena recebeu inúmeras homenagens e adaptações, a mais lembrada, feita por Brian de Palma em Os Intocáveis, e o filme que se tornou o mais importante exercício da montagem no cinema desde Intolerância (1916), obra que Eisenstein admitiu muitas vezes ter sido marcante inspiração para o desenvolvimento de suas teorias sobre a composição e arranjo de significados das imagens na grande tela, todas expostas por ele nos livros O Sentido do Filme (1942) e A Forma do Filme (1949).

Escrito por Nina Agadzhanova, com improvisações certeiras de Eisenstein e intertítulos de Nikolai Aseev — o mesmo do hilário As Aventuras Extraordinárias de Mister West no País dos Bolcheviques (1924) — o roteiro de Potemkin é bastante simples, dividindo-se basicamente em cinco histórias sequenciadas, mas que agem de forma independente. São elas: Os Homens e as LarvasDrama no PortoUm Morto Demanda JustiçaAs Escadarias de OdessaO Encontro com a Esquadra. Cada um desses blocos possuem o seu momento de tensão e algo parecido com um clímax emocional que se alarga até o sentimento dominante não mais segurar a sequência, e então, dois caminhos possíveis são tomados. Um, a consequência do terror social e a partida para o contra-ataque (relação de continuidade entre os dois primeiros e dois últimos atos) e dois, a passagem da desesperança das massas para um cenário de fraternidade e alegria, tema presente nas duas pontas de Um Morto Demanda Justiça e principalmente no final de Encontro com a Esquadra.

Embora ainda não estejamos falando de uma URSS sob as rédeas do infame Realismo Soviético nas artes (isso só estaria oficialmente em pauta a partir de 23 de abril de 1932), já é possível ver aqui uma série de ingredientes que marcariam aquele movimento. Todavia, sem a necessidade de retratar um mundo dual e muitas vezes manipulador, como eram a maioria das obras essencialmente políticas do Realismo Soviético, Eisenstein conseguiu fazer um filme onde as forças em conflito defendem seu quinhão com o máximo de proximidade social e histórica possíveis, desde a desobediência militar e o desafio à hierarquia — pensar que tudo começou por peças de carne podre e uma sopa que os marinheiros se recusaram a comer! — até a relação da população diante de Vakulinchuk, o único personagem que ganha algum tipo de relevância na obra (lembrando: dentro desse ideário, o herói não pode ser um, deve ser o povo). As burguesas no porto, os homens de negócios — um deles até solta um “morte aos judeus!” –, os espectadores diante do Mar Negro; todas as camadas parecem se reunir para ver a chegada dos marujos revoltosos e o levante de um novo “grito de libertação” na cidade, mesmo que uma parte ali não entenda muito bem o que está acontecendo. Tudo é apenas um espetáculo.

E quando menos se espera…

…um plano fechado mostra uma jovem sentindo algo nas costas. Um tiro foi disparado. A música de Edmund Meisel nesse momento prioriza as cordas em tons dramáticos, atacando a curtos espaços de tempo com os metais e a percussão, atiçando a corrida da multidão e evidenciando a montagem agressiva que firma pé nessa parte da fita, criando na imagem, no ritmo e com a partitura um ambiente de horror e necessidade plena de atenção. O espectador não pisca. Com a chegada dos Cossacos às escadarias de Odessa, o cerco da população e o início do massacre (reparem que o diretor se recusa a mostrar o rosto dos atiradores), temos o ponto mais alto do filme, o momento para o qual toda a trajetória anterior foi construída e o ponto que define as ações posteriores, uma resposta lógica do enredo, apesar de bastante simples e idealmente “decepcionante”, se posta em comparação.

A justaposição metafórica entre primeiros e primeiríssimos planos de rostos, olhos e bocas com planos gerais e médios do espaço geográfico, mais a noção de continuidade que a montagem nos passa à medida que o povo corre desesperado escadaria abaixo é um marco definitivo na História do cinema. A escada parece não ter fim. A violência acontece para mulheres com sombrinhas e roupas brancas de babados, para pessoas sem pernas, para homens esfarrapados, mulheres com cestas de pão e para crianças. Todos sofrem. Três momentos de todo esse caos irão se sobressair: 1) o garotinho alvejado e depois pisoteado, mais o desespero e a dor da mãe que pega o menino nos braços e segue bravamente contra a corrente, enfrentando e implorando aos Cossacos — o efeito inconsciente é ainda mais duro quando percebemos que mãe e filho estavam acenando para a bandeira [colorida de vermelho no próprio fotograma] naquela ocasião, simbolizando liberdade; 2) uma idosa sendo atingida no olho por um tiro; 3) o momento em que o carrinho de bebê desce as escadas, com a criança dentro, ponto do filme onde o público não consegue mais encontrar forças para aguentar a tensão dramática. Só esta sequência valeria o posto de obra-prima ao filme.

A escolha dos ângulos pelo principal diretor de fotografia da obra, Eduard Tisse, também faz toda a diferença na forma como o espectador olha o conflito, partindo das tomadas mais improváveis durante a rebelião no couraçado, passando por cenas de estonteante beleza visual, como a captura do Sol no horizonte e o corpo de Vakulinchuk em uma cabana, segurando uma vela, e, chegando ao último momento de grande drama da fita, a preparação para um possível confronto entre os rebeldes e a Armada Imperial. A diferença na criação de expectativa torna tudo ainda mais interessante, pois entendemos que variantes de um largo efeito de tensão, medo, rápida dispersão e retorno ao tema pode ser conseguido por diferentes caminhos. O prolongamento máximo do possível combate é uma prova de duas coisas: de que essa teoria de montagem é altamente relevante quando fala sobre a capacidade de ambientação e geração de emoções e de que um filme não precisa de tramas paralelas ou enredos intricados para falar muito coisa e se fazer sentir.

Com milhares de figurantes e forte influência de um movimento oficialmente extinto pelo governo cinco anos antes — mas que ainda mantinha algumas atividades em pequenos grupos dispersos pelo país — o Proletkult, Eisenstein e Tisse ainda desenvolveram experimentos técnicos para captação de luz e grande quantidade de pessoas na tela. Também aprimoraram aquilo que grandes diretores ao redor do mundo começaram a lançar mão justamente nessa década, a disposição de ações em segundo, terceiro ou mais planos.

Muito das linhas diagonais que marcam os primeiros atos do filme também indicam uma ligação estética de Eisenstein com o construtivismo, mostrando sua versatilidade e curiosidade de trabalhar com todas as ideias que pudessem dar conta de uma melhor captura da ação popular. O Encouraçado Potemkin é um filme de propaganda política sobre uma sociedade em conflito, sobre algumas injustiças e sobre uma revolta que pede mudanças, indo da submissão ao amor e fazendo-nos caminhar do horror para a admiração e então para o êxtase. Ele não está na lista de melhores de todos os tempos à toa. Disso vocês podem ter certeza.

O Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potemkin) — URSS, 1925
Direção: Sergei Eisenstein
Roteiro: Nina Agadzhanova (intertítulos de Nikolay Aseev)
Elenco: Aleksandr Antonov, Vladimir Barskiy, Grigori Aleksandrov, Ivan Bobrov, Mikhail Gomorov, Aleksandr Levshin, N. Poltavtseva, Konstantin Feldman, Prokhorenko, A. Glauberman, Beatrice Vitoldi, Daniil Antonovich
Duração: 75 min.

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