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Crítica | A Megera Domada (1967)

por Luiz Santiago
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A Megera Domada, segunda comédia escrita por Shakespeare, data do período entre 1593 e 1594 (data ainda controversa), e caracteriza-se pela personagem feminina forte, pelas questões ligadas aos costumes sociais e a guerra dos sexos, já apresentada de forma sutil, porém mais louvável, em A Comédia dos Erros.

A peça tem início com duas cenas introdutórias (antes do 1º Ato), onde vemos um bêbado de nome Sly ser levado a acreditar que é um nobre que enlouqueceu e, no meio dessa farsa, um grupo de atores representam para ele uma peça chamada A Megera Domada. No sentido dramático, essa introdução foi uma péssima ideia de Shakespeare, porque não adiciona absolutamente nada à obra e ainda tem o peso de não ser concluída ao final, ficando, literalmente, solta e sem sentido – a não ser que o leitor seja condescendente com a insossa explicação de que A Megera precisava de uma introdução para ganhar fôlego.

Grosso modo, a peça mostra a luta de um homem louco por dinheiro chamado Petrucchio, que aceita a difícil tarefa de fazer corte à filha de Batista, um rico gentil-homem de Pádua. Essa filha se chama Catarina, e é a megera da peça. Ao contrário dela, Bianca, a filha caçula, é de dócil temperamento e amplamente cortejada na cidade. A comédia apresenta, além das cenas entre Petrucchio e Catarina, a corte dos pretendentes de Bianca, o casamento das duas irmãs e pequenos acontecimentos em torno dessas histórias, com destaque para a confusão entre o Professor que se faz passar pelo pai de Lucêncio e o verdadeiro pai do jovem, abrindo espaço para um ótimo momento de comédia de erros, no início do 5º ato.

Em 1967, Franco Zeffirelli fez a sua própria versão cinematográfica da peça, um exercício que resultou em um filme divertido e muitíssimo bem produzido, com uma bela trilha sonora composta por Nino Rota e figurinos e fotografia admiráveis.

Zeffirelli e seus dois corroteiristas trabalharam o texto de modo a privilegiar a coreografia de Petrucchio (Richard Burton) e Catarina (Elizabeth Taylor), fazendo uso de motivos cênicos que funcionaram muito bem nas situações cômicas, mesmo que se desviem da peça. A tríade de roteiristas também retira a inútil introdução shakespeariana, iniciando o filme com a chegada de Lucêncio e Trânio à Pádua e partindo daí para a construção ideológica da megera, seguindo três vias de caracterização: o que os outros dizem a seu respeito, o que ela faz, e o que ela revela sobre si mesma.

O diretor tomou todo o cuidado de introduzir Bianca com charme e docilidade para em seguida trazer Catarina, cuja primeira aparição na tela é pela fresta de uma janela, espreitando os pretendentes da irmã com olhar ferino, uma verdadeira persona antissocial, uma mulher-megera.

No contexto renascentista, a Megera era a mulher de gênio forte e língua afiada, alguém à frente do seu tempo por questionar as atitudes dos homens e se colocar claramente contra certas imposições sociais. Na versão de Zeffirelli, essa característica é bastante destacada e ainda recebe uma representação grandiosa de Elizabeth Taylor, com direito a sutis toques de ironia no discurso final. Mesmo assim, tal discurso não consegue se despir por completo da carga machista da versão shakespeariana – e entenda que com isso não condeno o autor, porque compreendo o seu contexto social, mas é evidente que não tenho a obrigação de aceitar ou gostar de sua postura sobre esse tema.

A figura da mulher como Megera era um símbolo comum na sociedade em que Shakespeare viveu, uma sociedade que representa retrocesso no papel mais livre que a mulher tinha durante a Alta Idade Média. Aí pareceram as bruxas, as condenações à fogueira e cada vez mais a mulher era posta como uma persona de pouca ou menor importância (daí a dificuldade das rainhas da época governarem em paz). A Catarina de Shakespeare é justamente um produto não-familiar a esse período histórico, porque não tem absolutamente nenhuma intenção em seguir o modelo feminino subserviente que a cerca. Todavia, ela termina a peça exatamente do modo que sempre criticou: obedecendo as ordens do marido Petrucchio, mesmo que aceitemos essa obediência como uma colocação irônica do bardo, da mulher que concorda com o marido para conseguir o que quer – veja que, mesmo assim, ela permanece muda, sua palavra não tem valor, não alcança nada.

Na versão de Zeffirelli, Catarina dá mostras de superioridade a Petrucchio, talvez porque ele fosse um grosseirão propenso a bebedeiras e mais fácil de ser manipulado por subterfúgios, e essa versão do “homem ogro” ganha uma interpretação irretocável de Richard Burton. Há uma cena fantástica que prova bem isso, quando o casal volta para Pádua, para o casamento de Bianca. O jogo de “o Sol é a Lua e a Lua é o Sol” ao qual Catarina se entrega é claramente uma diversão para ela, que está em posição superior a Petrucchio, em cima do cavalo, enquanto ele está em pé, e tem que olhar para cima, a fim de vê-la; mas ao mesmo tempo, ele representa uma gama de sentimentos e fingimentos, algo que com certeza cobrou muito do ator, com ótimo resultado final. Quando se fala de ironias e dupla interpretação no que se refere ao casal, essa é uma das cenas da versão de Zeffirelli que eu posso aceitar a dualidade sem problema algum.

Mas o mesmo não se repete na reta final, especialmente na última sequência.

Mesmo que Petrucchio tenha que correr atrás de Catarina ao final do filme (o que talvez indique que a Megera não estivesse assim tão domada, ou que havia domado o “homem ogro”) a interpretação de Liz Taylor para a sequência é genuinamente séria e não indica qualquer ponto de ironia ou sarcasmo no discurso de submissão ao marido, algo que me incomoda sobremaneira e me faz ter a mesma má impressão que tive ao ler a peça, da qual também não gosto.

A despeito das antipatias e interpretações, A Megera Domada de Zeffirelli é uma obra interessantíssima, com forte pegada cômica e uma versão de maior feminilidade de Catarina, que se sente vaidosa da corte de Petrucchio e feliz ao ver os presentes de casamento, ou mesmo engajada no jogo de interpretar a mulher dominada, contentando-se em não ter palavra válida, mas conseguir o que quer por outros meios. Entendemos que sua persona irascível no início do filme era mais uma construção social de si mesma do que a verdadeira Catarina.

E é sob uma construção social que a megera chega ao fim do filme, independente da interpretação que tenhamos dela e do desfecho da obra. Nino Rota investe em um tema festivo com algumas melodias suaves, destacando, no banquete do casamento de Bianca, a postura sexy e delicada de Catarina. Liz Taylor veste, nessa cena, um oportuno vestido vermelho, e bebe sua taça de vinho de maneira que beira a volúpia, trocando olhares um pouco desconcertantes com Petrucchio. No início, ela era o que diziam dela, uma megera. Ao final, ela era a dócil esposa que Petrucchio desejava. A cada tempo – e isso é uma das coisas que mais me fascinam na personalidade feminina – ela se moldou à situação perfeitamente, construindo várias versões de si. É como dizia Simone de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Resta-nos a discussão sobre que tipo de mulher Catarina se tornou, por fim.

A Megera Domada (The Taming of the Shrew) – Itália, EUA, 1967
Direção: Franco Zeffirelli
Roteiro: Suso Cecchi D’Amico , Franco Zeffirelli, Paul Dehn (baseado na peça de William Shakespeare)
Elenco: Elizabeth Taylor, Richard Burton, Cyril Cusack, Michael Hordern, Alfred Lynch, Alan Webb, Giancarlo Cobelli, Vernon Dobtcheff, Ken Parry, Anthony Gardner, Natasha Pyne
Duração: 122 minutos

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