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Crítica | O Corcunda de Notre Dame (1996)

por Gabriel Carvalho
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“Silêncio!”

Contém spoilers.

Apesar de não ter sido aclamado pela crítica da mesma maneira que animações anteriores da empresa haviam sido, consideradas marcos dessa arte particular, O Corcunda de Notre Dame é uma joia entre as produções menos relembradas da empresa, que merecia ter sido recebida com todos os louros que, em um primeiro momento, Quasimodo (Tom Hulce) recebe do povo, ao revelar-se para um mundo cheio de preconceitos. A obra, em seu caso particular, não chegaria a ser recepcionada com os mesmos tomates e ovos, jogados, mais tarde, na face do “monstro” que a população local enxergava em um homem gentil e bondoso. Mesmo assim, nenhuma euforia nasceu de sua mera existência, mas, por outro lado, considerável silêncio. Antes disso, a recepção fria de Pocahontas, segundo piso deslocado de uma onda de altíssima qualidade de produções, durante o grande Renascimento Disney, não havia freado os estúdios, destinados a produzirem um musical de alto nível, com imenso orçamento, interessado, ambiciosamente, em fazer justiça ao romance de Victor Hugo, Notre Dame de Paris, literatura escolhida para uma adaptação. O resultado é uma das produções cinematográficas mais poderosas e corajosas da empresa, a entrada mais adulta de uma filmografia de animações direcionadas a crianças.

Em um primeiro momento, essa maturidade apresentada em O Corcunda de Notre Dame contrasta fortemente com a covardia antes apresentada em Pocahontas, rebaixando ainda mais o longa-metragem de 1995 em questão de inaptidão na hora de trabalhar questões inerentes a uma narrativa sobre a colonização da América. Apesar de ter sido “criticado” por ser sério ou sombrio demais para crianças – em um discurso emburrecedor sobre repetição constante do mesmo material, sem interesse em ideias novas e contrárias, para garotos e garotas que, teoricamente, não conseguem absorver mensagens mais fortes e mais exigentes -, tais características do longa-metragem são compreensíveis quando vemos as temáticas observadas pelo longa-metragem, distantes do operante, mágico, porém raso e batido, discurso unidimensional sobre esperança. Mais claramente, o racismo é uma pauta extremamente notável, diante das perseguições injustas que o Juiz Claude Follo (Tony Jay) comanda contra os ciganos, massacrados não só pela Justiça, que de justa nada tem, quanto pela opinião popular, extremamente alienada. O personagem-título é, enfim, apresentado por meio de um marionetista, um recurso narrativo que, musicalmente, confere uma interessante imersão ao espectador.

Contudo, também é interessante notar que a animação da Disney adapta fortemente diversas passagens do material original, mantendo-se fiel, porém, à essência da literatura de Victor Hugo. O aspecto religioso, por exemplo, é suavizado, mas ainda está fortemente presente na obra, tanto por referências claras quanto pelas entrelinhas extremamente ricas. O antagonismo do Juiz Claude Follo é um dos mais memoráveis dentre os vilões das animações da empresa. O conflito existente no intrínseco do personagem é fortíssimo, pensando a si mesmo como uma figura de Deus, escolhida por Deus, mas, por um outro lado, ainda temente a Deus, ordenado a cuidar e criar da criança desfigurada que teve a mãe morta pelas suas próprias mãos, supostamente realizando um serviço em nome de Deus: o combate contra a escória da humanidade. Ao mesmo tempo, seu personagem é uma criatura ainda humana, com desejos humanos que rejeita hipocritamente, condenando o outro pelos pensamentos que possui, considerados imorais e pecadores, não necessariamente pela Igreja, mas pela sua própria visão da religião. A sequência musical de Hellfire traduz muito bem esse sentimento. Dessa forma, os impulsos sexuais que nutre por Esmeralda (Demi Moore), uma cigana, dão margem a uma perseguição religiosa abominável, baseada em um fanatismo cego e vil.

Também notamos um controle absurdo – esquecido em Pocahontas – da empresa em trabalhar temas adultos para um público mais abrangente, como as referências sexuais implícitas, sem cair para um deslocamento da essência inerente. A decisão de investir nessa vertente, sem ignorá-la, é equilibrada com um enredo cheio de alma, envolvendo o espectador em uma narrativa de superação emocionante. Porque, enquanto essa trama cheia de perversidade está sendo contada sob os olhos do vilão, o mestre de uma criança que, ao mesmo tempo, rejeitou e acolheu, o protagonista, Quasimodo, passa por uma trajetória interessantíssima de auto-descobrimento e entendimento do mundo ao seu redor, visto, em uma primeira instância, apenas de muito longe, do alto da Catedral de Notre Dame. O personagem quer conhecer esse universo apenas imaginado. Até mesmo as amizades, gárgulas reanimadas, não são exatamente reais, embora, nesse caso, o filme falhe em entender um jogo de suposição mais funcional, deixando a carga dramática cair para se adequar a uma vertente cômica pontual, não tão operante quanto o resto da fita. A jornada que possuímos em nosso campo de visão é das mais belas já contadas pela empresa, precisando dos momentos mais tristes e dos mais apaixonantes para funcionar integralmente.

Ademais, a quantidade de coadjuvantes em O Corcunda de Notre Dame é bastante inferior a de outros longas-metragens da empresa, contribuindo para uma narrativa que se movimenta sem digressões, direta e fluida, inteligente na maneira como enxerga seus personagens, contribuindo para uma discussão, acima de tudo, sobre justiça. É justo que Quasimodo seja condenado a viver eternamente dentro de uma catedral, como um sineiro? É justo os ciganos serem repreendidos pelas forças parisienses? Enquanto Pocahontas, em mais uma comparação necessária, possuía um maniqueísmo sacana, bem reprovável, O Corcunda de Notre Dame consegue se desvencilhar dos mesmos equívocos. Na trágica sequência da coroação de Quasimodo, atacado com frutas, apesar dos soldados serem os primeiros a agredir o protagonista, os camponeses também se unem ao ato, mostrando uma passividade alienante em decorrência do que está acontecendo em volta deles. Com o Capitão Febo (Kevin Kline), o filme também ganha um ingrediente necessário para que a história desenrole-se com mais complicadores, visto que o homem se apaixona por Esmeralda, a cigana que também é responsável por ser o primeiro contato de Quasimodo com o amor – e a bondade.

Outra visualização da obra é, definitivamente, focada no valor de produção estupendo, que garante uma ótica enorme de fissuramento do espectador em relação a ela, tecnicamente impecável. As tomadas aéreas caminham entre os cenários, partindo da catedral e indo até o meio do povo, mapeando todo o cenário e permitindo, acima de tudo, o espectador se encantar pela arquitetura gótica, sentindo-se dentro do contexto ambientado. O uso da computação gráfica também é mais acertado, sem destoar da animação tradicional. Ao mesmo tempo, O Corcunda de Notre Dame possui uma duração um pouquinho maior que a maioria dos filmes da Disney lançados anteriormente, indicando essa pretensão da empresa em torná-lo uma espécie de épico musical. A ambição origina uma trilha sonora fenomenal, com canções que exprimem muitos dos valores existentes dentro dos personagens, construídos com muita competência. Além disso, o design dos personagens são excelentes contadores de histórias, pois, por exemplo, Quasimodo não é, uma única vez, tratado como um monstro pelas lentes da Disney, mas visto como um homem, embora desfigurado, belíssimo, que o espectador torce e simpatiza por. Do outro lado, Follo é uma imagem rejeitável, com traços indicando maleficência, aliás, sendo visualmente parecido com a antagonista de A Bela Adormecida.

Por fim, uma curiosidade é que, embora, hoje, poucos enxerguem O Corcunda de Notre Dame como uma das obras mais populares desses estúdios, a animação foi um considerável sucesso de bilheteria na época de seu lançamento. O povo foi para as salas de cinema, mas saiu das sessões, infelizmente, um tanto quanto indiferente. Hoje, diante das questões de refugiados estarem crescendo tanto, assim como o combate contra todos os tipos de preconceitos, O Corcunda de Notre Dame permanece sendo uma obra impactante, significativa para a história da Walt Disney Animation Studios, que, com esse projeto, alcançou o ápice no trabalho de temáticas importantes, mais complexas e socialmente relevantes – algo parecido com o que foi feito no, muito mais infantil, Zootopia. A universalidade e atemporalidade das mensagens permanece, trabalhadas no formato de um grande musical. Quando Quasimodo sonha, ele sonha em algo muito maior do que seus desejos pessoais pedem para ele desejar. O sonho dele não é ser uma criança para toda a eternidade, virar um menino de verdade ou encontrar o amor de sua vida. Quando uma das coisas que ele, aparentemente, queria, o amor de Esmeralda, não lhe é possível, a aceitação aparece, abrindo portas para uma felicidade das mais simples e verdadeiras. O seu sonho é por justiça.

“Justiça!”

O Corcunda de Notre Dame (The Hunchback of Notre Dame) – EUA, 1996
Direção:
 Gary Trousdale, Kirk Wise
Roteiro: Tab Murphy, Irene Mecchi, Bob Tzudiker, Noni White, Jonathan Roberts (baseado na obra de Victor Hugo)
Vozes originais: Tom Hulce, Jason Alexander, Demi Moore, Tony Jay, Paul Kandel, Kevin Kline, Mary Wickes, David Ogden Stiers, Charles Kimbrough, Heidi Mollenhauer, Frank Welker, Gary Trousdale
Duração: 91 min.

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