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Crítica | O Homem Duplicado

por Guilherme Coral
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  • spoilers.

Mesmo tendo em sua primeira empreitada em Hollywood com Os Suspeitos, Denis Villeneuve jamais abandonou o foco psicológico nos seus personagens, marca mais evidente de sua ainda curta, mas expressiva filmografia. Independente do país no qual a produção acontece, a identidade do diretor transparece em sua obras, tornando fácil a identificação da autoria de seus filmes. Evidente que, mesmo com tal aspecto em mente, alguns de seus longas acabam dialogando diretamente com outros, não necessariamente por meio da trama, mas pela atmosfera. Nesse sentido, O Homem Duplicado representa um retorno às origens, visto que, mesmo bem discretamente, remete a Redemoinho e ainda mais levemente a 32 de Agosto na Terra.

Digo isso, pois há um sentimento de solidão que toma conta do espectador enquanto esse assiste o filme de 2013 do diretor canadense. Baseado no livro homônimo de José Saramago, O Homem Duplicado nos conta a história de um professor universitário de História, Adam (Jake Gyllenhaal) que, em dado momento, descobre a existência de um ator fisicamente idêntico a ele. Profundamente abalado por essa descoberta, o protagonista busca uma forma de entrar em contato com seu “duplo” e, quando consegue fazê-lo, encontra um homem que, em personalidade, pode ser considerado seu exato oposto.

Talvez o aspecto que melhor defina a narrativa dessa obra é o quanto ela é passível de interpretação. Similarmente a Redemoinho, esse filme de Villeneuve é totalmente subjetivo, deixando-nos incertos não somente em relação às ações dos personagens, como à própria passagem de tempo em si. De imediato é criada a dúvida sobre a existência, de fato, de um homem idêntico a Adam e, mesmo quando ambos aparecem juntos em tela, essa dúvida não é sanada, fruto da narrativa cautelosamente criada pelo diretor, que faz uso pontual e específico de planos curtos, ao longo da projeção, garantindo um ar onírico à obra, e, claro, pelo próprio roteiro de Javier Gúllon, que utiliza a oposição dos dois personagens a fim de se aprofundar na mente do protagonista.

Dito isso, O Homem Duplicado pode ser enxergado como uma história sobre o amadurecimento, sobre um homem que deve aprender como lidar com o casamento, questão motivada pela gravidez de sua esposa. Podemos, portanto, ver um dos dois homens idênticos como o lado do personagem que não deseja se dedicar a um relacionamento, tendo casos com outras mulheres, que, na situação, seria representado pela namorada de Adam. Esse ponto dialoga com a presença pontual, mas sentida, das aranhas ao longo da obra, que representam a própria visão do personagem central em relação às mulheres, que o prende em suas teias – a própria figura da aranha dialoga com um dos medos primitivos do ser humano, em relação a insetos – com esse aspecto podendo ser visto claramente em um dos sonhos do protagonista e, lógico, no chocante desfecho da obra.

Tal metáfora, no entanto, vai  ainda além, englobando a própria cidade em que a história se passa. Praticamente deserta, com diversos trechos mostrando apenas o protagonista sozinho em um amplo cenário, esse ambiente urbano pode muito bem simbolizar a própria mente de Adam/Anthony, interpretação essa que se encaixa com um dos pôsteres do filme. Villeneuve dedica vários planos ao longo da projeção justamente para mostrar essa cidade em establishing shots, que, novamente, evidenciam a solidão de suas ruas. Com o passar do tempo, vemos aranhas gigantes percorrendo esse cenário, ponto vinculado aos fios elétricos, mostrados em primeiro plano em inúmeros trechos, presentes ao longo da cidade, como se fossem as teias de tais criaturas. Não por acaso, tais seres começam a aparecer justamente quando a esposa grávida de Anthony passa a ganhar mais espaço na trama.

Não demora muito para que passemos a enxergar o protagonista como se estivesse em uma prisão construída por si mesmo. A passividade e resignação tão presente no rosto de Adam criam a perfeita figura de um homem sem controle de sua vida, como se estivesse cem por cento do tempo entediado. Esse elemento, sem dúvida, é perfeitamente ilustrado pelos tons amarelados da fotografia de Nicolas Bolduc, que, aliada à predominância de tons monocromáticos, variando, em geral, do bege ao preto, criam um ar de estagnação na cidade. Dessa forma, o tédio se faz visível em todos os aspectos da imagem, que, por sua vez, dialogam com a trilha de Danny Bensi e Saunder Jurriaans, que optam por melodias quase contemplativas, pontuadas por sons graves simbolizando o medo do protagonista em relação ao comprometimento e à figura feminina em si.

Jake Gyllenhaal, como sempre, não decepciona e nos traz um profundo, crível e angustiante retrato sobre como o homem pode, em seu interior, ser um oposto de si mesmo. Os dois personagens vividos por ele não são diferentes apenas na mentalidade, como na própria linguagem corporal e fala. Enquanto que um é hesitante, inseguro, o outro demonstra estar, sempre, no domínio da situação. Curiosamente, nenhum desses lados apresenta-se em uma relação saudável, mostrando como o caminho certo seria o meio-termo, algo que o protagonista tragicamente falha em atingir durante toda a projeção.

Talvez o ainda mais trágico aspecto de toda essa construção narrativa de Villeneuve seja a forma como sua narrativa estabelece um ciclo ao término da projeção, fazendo o protagonista retornar ao ponto de origem. Naturalmente que o desfecho é dúbio e a libertação de seus vícios de comportamento pode ser representado pelo acidente vivido por Anthony e Mary (Mélanie Laurent), mas opto por acreditar em uma visão mais pessimista, que torna a colocar o protagonista na posição de receio em relação ao seu casamento, algo tão bem simbolizado pela aranha gigante nos segundos finais e o próprio fato de que ele retornará ao estranho clube que vemos nos minutos iniciais do filme. Dessa forma, toda a narrativa dialoga com a aula dada por Adam logo nos minutos iniciais, que fala sobre a repetição de padrões na História, especificamente falando sobre a ditadura, que é justamente como ele enxerga o próprio comprometimento amoroso.

Subjetivo, angustiante e passível de ricas interpretações, O Homem Duplicado novamente funciona como prova do talento de Denis Villeneuve, que nos entrega uma obra que deve ser digerida aos poucos e fazendo com que o espectador, por muito tempo, pense nela após o término da projeção. Criando um sentimento de solidão, tédio e desolação, temos uma narrativa que certamente atingirá os espectadores de formas diferenciadas, com direção, fotografia, atuações e trilha sonora todas atuando em conjunto a fim de nos tirar do lugar-comum, jogando-nos de cabeça na mente de seu protagonista.

O Homem Duplicado (Enemy)Canada/ Espanha/ França, 2013
Direção: Denis Villeneuve
Roteiro: Javier Gúllon (baseado no livro de José Saramago)
Elenco: Jake Gyllenhaal, Mélanie Laurent, Sarah Gadon, Isabella Rossellini, Joshua Peace, Tim Post, Kedar Brown
Duração: 91 min.

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