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Crítica | Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica

por Iann Jeliel
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Dois Irmãos

Venha querido irmão, nosso destino aguarda!

Irmãos… Quem tem, geralmente deseja que nunca tivesse, quem não tem, no mínimo, na infância sonhava em ter um. Esse tipo de laço, ou falta de um, faz parte do amontoado de temáticas universais com que qualquer um pode se relacionar, e a Pixar sempre demonstrou um domínio ímpar em imaginá-las dentro de universos fantasiosos animados a âmbito de divertimento, mas principalmente de reflexões diversas sobre as relações humanas espelhadas em um mundo abstrato. 

Há quem diga que “criativamente” falando a empresa na última década viveu sua fase mais genérica, sem inspiração, mas já vejo por outro lado, partindo de Toy Story 3 e principalmente com Divertida Mente, seu foco se voltou para outra vertente, não tão interessada em elaborações complexas de universo (ainda que elas estejam presentes), e sim muito mais fielmente no cunho humanista e representativo dos personagens, como bem demonstra os dois mencionados e o ápice em Viva: A Vida é uma Festa. Onward vai dar prosseguimento a esse novo legado sentimentalista, essencialmente explorando a melancolia de dois irmãos que não conheceram o pai (ao menos, não direito) e conseguem uma oportunidade de realizar tal feito através das possibilidades conceituais do RPG dentro da contemporaneidade urbana. Contudo, não seja inocente em achar que o aspecto emocional é só pautado na expectativa de torcer para que eles consigam ver o pai, no feitiço de um dia que precisa ser consertado. 

A Pixar sempre esconde cartas na manga, e existem ao menos três possibilidades de camadas emocionais distintas que atingem seu objetivo de diferentes maneiras, bem como em Coco, tem a principal (para os desentendimentos familiares), a subversiva (para a forma como lidar com o luto) e a específica (para quem conseguia se relacionar com tudo isso dentro da música). Pois bem, essa tríade é retomada, em circunstâncias diferentes, mas essencialmente com estruturas bastante semelhantes, dentro da progressão narrativa. E aí fica o questionamento e impasse de que esse possa ser outro filme do estúdio na zona de conforto, e na real, pode-se dizer que sim, mas como o cinema é uma arte subjetiva, isso só é possível afirmar a depender do grau de intimidade de alguns com cada camada temática. Porque nem os mencionados – ou indo além – nem qualquer outro filme da Pixar (nem meus favoritos Procurando Nemo e Os Incríveis) conseguiu me atingir tão fortemente.

Isso porque sou filho único e minha infância era intensamente imaginativa, nunca gostei de ganhar brinquedos, mas criava os meus próprios, e geralmente, como não tinha diariamente com quem brincar, baseava essas criações dentro de um cosmos particular de aventuras rabiscadas em um caderninho que misturava conceitos de RPG com monstros clássicos e personagens derivados de algum desenho animado que gostava como heróis (detalhe importante: eu sempre era o principal ao lado de algum grande amigo meu que considerava como irmão). Todo esse “mundinho” funcionava numa lógica de videogame, eu ia passando pelas fases enquanto enfrentava novos desafios. Antes era com os bonecos, depois passou a ser eu mesmo, dentro do meu “casarão”, fingindo estar vivendo aquela aventura imaginária, e mesmo que sempre que desse, meus amigos participavam quando iam pra lá, preferencialmente era muito uma aventura minha pra mim mesmo, e isso meio que fez, como diria o Naruto, “meu jeito nerd de ser”. Ok, mas aonde eu quero chegar com isso? 

Bem, só o fato de a premissa partir de dois irmãos em desventuras em um igualmente miscigenado mundo imaginário, como na minha infância, já seria o suficiente para finalizar a crítica justificando o quão presenteada foi minha experiência pessoal. Contudo, quando essa é ligada e complementada ao excepcional e calculado arco de transformações do personagens com os desdobramentos da história, a experiência passa de um preenchimento íntimo a toda uma representatividade externa, já que o roteiro reconhece a globalização nerd e brilhantemente a conecta dentro do tocante aspecto humanitário relacionado à familiaridade, luto e autognose dos irmãos de dentro que espelharão um entendimento para os irmãos de fora.  É um pouco difícil relacionar sem detalhar o filme, mas colocando em outras palavras, a construção de universo de criaturas mitológicas dentro de um contexto digital é exatamente uma afirmação de que hoje o nerd e esses conceitos são vistos com outros olhos, mais deslocados, com mais voz, embora ainda muito usada para fins mercadológicos, e por isso até mesmo aquele mundo criado à base de magia precisa dela de volta. Só que o próprio roteiro fala, não é fácil dominá-la, fazendo analogia direta com a dificuldade de ter sua voz, de restabelecer relações desconjuntadas, tanto que para além dos laços já exaltados, os irmãos vão sendo sensibilizados por uma força maior de amadurecimento partindo de atitudes progressistas.

Para Frente” diz o título originalmente, mencionando não só a trilha na história em busca do artefato (busca igualmente projetada em uma lógica de linearidade de obstáculos típicas de um jogo de videogame) que fornecerá o retorno completo do pai, como também em como eles devem agir conforme a compreensão gradual da magia, pensando nela também para as mudanças de funcionalidade daquele mundo (é preciso dominar conceitos antigos para que possa compreender e ajudar a progredir o presente). Desse modo, todas as pontes ideológicas do filme se cruzam, e o detalhamento do percurso é recheado de pausas dramáticas e cômicas bem dosadas com o intuito de entreter as crianças e ao mesmo tempo educar, pincelando temáticas diversas com naturalidade à trama (as fadas motoqueiras são as mais significativas). Interseções que preenchem a riqueza de detalhes do ambiente com a simplicidade e coerência necessárias, para que elas não se tornem o chamariz principal, ou mesmo deslizes de ritmo, pelo contrário, elas até auxiliam a uma imprevisibilidade narrativa, onde os acontecimentos são constantemente modificados pelos contextos. 

Em suma, é outra exemplificação de como a Pixar sabe fazer animações como ninguém, delicioso, divertido e que transcende esses campos para fornecer ensinamentos facilmente relacionáveis, dando ainda um passo além, para usar esse próprio senso de aventura e magia nerd tão em alta para amadurecer os tais reforços ideológicos do proposito do filme. Não é exatamente novo dentro do histórico da empresa, mas humildemente digo que isso não interessa. Como demostra Anton Ego no final de Ratatouille, o prato especial é moldado por memórias do nosso passado, e Dois Irmãos foi exatamente esse prato para mim, mais do que isso, foi um presente para preencher um vazio que nem lembrava mais que existia em meu íntimo, se reverberando em lagrimas melancólicas, alegres e sinceras. E desculpe-me os tecnomaníacos de plantão, entre a razão e a emoção, é na segunda que o cinema demostra sua total beleza.

Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica (Onward, EUA – 2020)
Direção: Dan Scanlon
Roteiro: Dan Scanlon, Jason Headley, Keith Bunin
Elenco: Tom Holland, Chris Pratt, Julia Louis-Dreyfus, Mel Rodriguez, Octavia Spencer, John Ratzenberger, Tracey Ullman
Duração: 102 min.

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