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Crítica | Decálogo 10 – Não Cobiçarás Coisas Alheias

por Luiz Santiago
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O Decálogo 10 (exibido em 24 de junho de 1989) é impressionante em tantos sentidos e fecha a série de maneira tão orgânica que o espectador quase se esquece de que ele foi feito sob um altíssimo nível de stress do diretor Krzysztof Kieslowski, que trabalhava ininterruptamente desde Sem Fim (1985) como forma de se afastar dos problemas pessoais (motivados por elementos artísticos e políticos) pelos quais passava.

Com este episódio, o diretor amarrou todas as pontas possíveis dentro de sua proposta de reinterpretar os 10 Mandamentos e ainda nos trouxe uma visão abrangente para a série, aludindo a uma forma de olhar a vida com ou sem religiosidade: enxergar-se como humano, entender que o mundo não funcionará exatamente da forma como queremos só porque queremos, ter respeito pelas pessoas e dar abertura moral para o diálogo com o que é diferente daquilo a que se está acostumado. Um forma bastante eficiente de estabelecer “outros mandamentos”, não?

A trama de Não Cobiçarás Coisas Alheias é uma comédia de humor ácido com alguns elementos de suspense e, aqui, diferente do Decálogo 9, ligado ao ambiente de conspiração que o espectador ora percebe como terror, ora percebe como gângster. Aquele velho que vemos mostrar uma pasta de selos para a professora de ética em Não Levantarás Falsos Testemunhos morre neste episódio e deixa sua valiosíssima coleção de selos para os dois filhos; um jovem cantor de uma bada de punk rock — que inicia o episódio com uma letra que repassa os mandamentos em ordem bastante sintomática –; e um pai de família cuja relação com a esposa é frágil e a relação com o filho bastante próxima, exatamente o oposto de sua própria relação com o pai que acabara de morrer.

Longe de arroubos sentimentais e lamentos vazios, o roteiro do Decálogo 10 assume a realidade das coisas e, embora não diga certas coisas, deixa pistas claras para o espectador seguir. O pai passou a vida inteira colecionando selos. Esteve plenamente longe dos filhos (o mais velho dá a atender alguma necessidade financeira por conta disso) e jamais teve uma vida luxuosa, tudo isso pela sua adoração a algo que, para o velho, era uma adoração: o seu objeto de coleção.

É nesse exato ponto que o ciclo se fecha. Qual é o mandamento que alerta para não substituir a imagem de Deus por outras coisas? Aquele que diz Amarás a Deus Sobre Todas as Coisas, que é o Decálogo 1, e cuja punição ali havia sido a morte do garoto Pawel. Aqui, quem morre é o velho. Seus filhos, ao descobrirem a riqueza que tinham em mãos, passam a cercar-se de cuidados e medo, fazendo de tudo para recuperar uma série “perdida” para um delinquente que “negociava” coisas na periferia de Varsóvia. Outro ciclo se fecha, exatamente como em Não Roubarás e Não Desejarás a Mulher do Próximo: os irmãos desejam algo que é deles.

Com a presença do punk rock e de dois momentos musicais bem específicos (um apenas com percussão e outro com pequenas frases musicais em cordas), o escopo emotivo do episódio vai da decepção à euforia; da simpatia ao ódio; do desespero à amarga alegria. Esses sentimentos contrastantes, ajudados pela fotografia mais realista de Jacek Blawut, ajudam a criar um cenário propício para a ação do sistema ético entre “fazer ou não fazer?”, situação a que o irmão mais velho é exposto quando lhe é feita uma proposta indecente para doar seu rim que salvaria a vida de uma criança. Esse sistema ético fecha outro ciclo da série, aquele aberto no Decálogo 2, no dilema da mulher que não sabia se fazia ou não um aborto.

Perceba que existem aqui visões de todos os episódios do show, versões revistas para uma nova realidade, onde a busca da riqueza pela riqueza gera a pobreza. O mandamento divido é desobedecido em inúmeras camadas, desde o não honrar a memória do pai (Decálogo 4 — e perceba como Kieslowski corrompe a comparação ao fechar o ciclo) até a persistência no desejo pelo que é do outro, o que se dá tanto do lado dos dois irmãos quanto do lado das pessoas que estão de fora, que querem a coleção de selo do velho falecido ou o rim de um dos filhos. Nesse meio ainda cabem o luto não guardado dos irmãos, que cai exatamente na proposta do Decálogo 3; a luxúria do irmão mais novo que incorre em Não Cometerás Adultério (vinda também com a aparição de Tomek, o garoto que tenta suicídio o respectivo Decálogo) e, por último, a crítica ética de Kieslowski, em forma de ironia, para o desejo que tanto os irmãos assaltados quanto o espectador tem, um desejo que esbarra no único mandamento que faltava para fechar a obra como um todo e é, vejam bem, o mandamento do meio da série, o Decálogo 5: Não Matarás.

Ao final da trama, o diretor nos chama atenção para o fato de que em cada janelinha daquele complexo residencial polonês, inúmeras vidas e inúmeros pecados são cometidos. Imaginem isso em escala mundial. Entre fiéis e não fiéis o pecado impera. Em nenhum episódio vimos ações humanas que poderiam estar livre de uma ação desse tipo e, na maior de todas as ironias seculares (em oposição à Bíblia/Torá), todas elas contaram com o maior humanismo possível por parte do diretor, se não no fim, no desenvolvimento da história, cujo clímax é exatamente a cena final desde Decálogo 10: estando completamente perdido, tendo errado e sido punido por isso, resta fazer a única coisa sã a ser feita: rir de si mesmo, levantar-se e seguir em frente.

Decálogo 10 – Não Cobiçarás Coisas Alheias (Dekalog, dziesiec) — Polônia, 1989
Direção: Krzysztof Kieslowski
Roteiro: Krzysztof Piesiewicz, Krzysztof Kieslowski
Elenco: Jerzy Stuhr, Zbigniew Zamachowski, Henryk Bista, Olaf Lubaszenko, Maciej Stuhr, Anna Gornostaj, Cezary Harasimowicz, Daniel Kozakiewicz, Henryk Majcherek, Elzbieta Panas, Jerzy Turek, Grzegorz Warchol
Duração: 57 min.

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