Home Colunas Entenda Melhor | Cinema e Metalinguagem

Entenda Melhor | Cinema e Metalinguagem

por Leonardo Campos
2,4K views

O filme que fala sobre o filme. A música que flerta com a própria música. A arte comenta e reflete a sua própria condição. Conceitualmente, a metalinguagem se configura como a linguagem da linguagem, uma espécie de leitura relacional, envolvida num processo de pertencimento, pois implica um sistema de signos de um mesmo conjunto que aponta referências para si, numa estruturação que explica a descrição de um objeto. O filme falando sobre o processo de produção, como ocorre em A Noite Americana e Cantando na Chuva. Um personagem de um romance em diálogo com o leitor, como o humorado e filosófico Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Uma pintura que ilustra o ofício de um pintor, semelhante ao clássico As Meninas, de Velásquez. Uma música remetendo-se a si. Todas essas possibilidades ilustram o processo de metalinguagem.

No desenvolvimento das ideias em A Metalinguagem, de Samira Chalhub, a autora afirma que a metalinguagem tem origem nos estudos de retórica e modernamente, ganhou relação extratextual. Conforme os apontamentos de Chalhub, a função metalinguística é percebida quando, numa mensagem, é o fator código que se comporta como referente. Basicamente, a função meta, sinteticamente, centraliza-se no código, sendo o código falando do código, linguagem sobre linguagem. A autora reforça que na contemporaneidade, a situação da metalinguagem mudou. Hoje, o nosso público não é mais tão passivo e incorporado ativamente como colaborador-leitor dentro do espaço da linguagem em diversas produções mais interativas da atualidade, possui outro tipo de relação com a arte. É um processo tributário das novas descobertas da linguagem, passíveis de serem reproduzidas. Diante do exposto, a constatação: o que era único e aurático, sacralizado, não tem mais como assim se manter assim.

Ainda sobre conceito, a metalinguagem indica a perda da aura, no sentido de Walter Benjamin mesmo, isto é, ela dessacraliza o mito da criação, coloca em exposição o processo de produção da obra, diferente dos tempos anteriores ao nosso, quando o público geralmente contemplava a arte de forma passiva. O que acontecia nos bastidores não aparecia em cena. Eram ocultados do espetáculo. Quando as cortinas se abriam, tudo estava pronto para ser encenado, tocado, apresentado, etc. Desta forma, a obra ofertava-se ao público assistente, ocupando o posicionamento passivo na plateia. Na contemporaneidade, segundo Chalhub, esta situação mudou. Em A Noite Americana, de François Truffaut, e Hitchcock, de Sacha Gervasi, somos levados para dentro dos bastidores de produção de um filme, numa quebra da unicidade e “aura” da obra, com o cinema falando para o espectador “eu sou cinema”.

Como traço da modernidade, ainda focado no livro A Metalinguagem, de Samira Chalhub, essa função da linguagem retrata o desvendamento do mistério e nos mostra o desempenho do emissor na sua luta com o código. A metalinguagem nos ensinou que é possível o diálogo entre vários códigos. Exemplo disso é quando o artista faz alusões ao processo criador, com o emissor, a atuar conscientemente com a ferramenta de seu trabalho e assim, ocupa o lugar do leitor. Importante ressaltar que a intertextualidade é uma forma de metalinguagem, com a qual se toma como referência uma linguagem anterior. É uma afirmação nos remete ao que T.S. Eliot, no âmbito dos estudos literários de língua inglesa, disse sobre o fato de que ninguém escreve sozinho, afinal, ao escrever, acionamos todo um acervo. Como ilustração destas informações, no espaço de outras produções artísticas, podemos apontar os filmes de suspense do irreverente Brian De Palma, cineasta que sempre buscou uma construção narrativa muito próxima aos trabalhos de montagem estabelecidos nos filmes de Alfred Hitchcock. Os filmes da franquia Pânico também são bons exemplos de referencialidade, pois ao retomar a história de narrativas clássicas do terror, abraça os clichês destas produções, mas também promove uma autocrítica.

Em prol da solidificação das ideias propostas neste artigo, cabe também resgatar outra consideração teórica oriunda do campo dos estudos literários que permite um diálogo bastante ilustrativo sobre a relação de metalinguagem: o clássico O Trabalho da Citação, de Antoine de Compagnon. No livro, o autor afirma que a citação é um processo de leitura e escrita, pois, ao mesmo tempo em que escreve, os escritores, em nosso caso, os realizadores e roteiristas de produções metalinguísticas, unem também o ato de leitura ao processo. Assim, a reescrita se concebe como devir do ato de citação. Ao produzir, o artista recorre ao processo de input de toda a sua vida e nos apresenta obras que se dobram sobre si mesma, como num jogo de espelhos, numa deformação do texto “original”, subversivo ao transformar os elementos estruturais e o sentido de seu ponto de partida, quando o foco da obra é referenciar outras produções já existentes e populares. Quem nos ajuda a entender isso é Affonso Romano de Sant’Anna, no livro Paródia, Paráfrase & Cia, livro que desenvolve algumas definições não estanques para a paródia e para a paráfrase, ao nos apontar que a paródia é um efeito metalinguístico, e que, diferente da paráfrase, que é pró-estilo, surge como efeito contra-estilo.

Desta forma, a paráfrase surge como um desvio mínimo do texto base, enquanto a paródia como o desvio total, numa perspectiva talvez mais abrangente. O Desprezo, de Godard? Paráfrase Todo Mundo em Pânico e Os Picaretas? Paródia. Neste jogo com a linguagem, percebemos a presença da apropriação, uma ação costumeira no âmbito da arte pop, espaço onde encontramos a reunião de materiais diversos disponíveis no cotidiano, justapostos para a confecção de um objeto artístico. É um esquema que não pretende reproduzir, mas produzir algo diferente com base naquilo que é retroalimentado. Durante estes exercícios com a linguagem, o artista se encontra dentro de um feixe de variadas possibilidades textuais: ao parodiar o próprio texto, realiza a intratextualidade, ou auto textualidade, quando este reescreve a si mesmo. É o ocorre com Wes Craven quando cita a sua própria produção, A Hora do Pesadelo, em diálogos da trajetória de Ghostface, escritos com eficiência por Kevin Williamson.

Já no processo de paródia do texto alheio, realiza a intertextualidade. A paródia, conceitualmente, pode ser considerada um filho rebelde, espécie de espelho invertido que exagera, como numa lente, os modos, semelhante ao que se faz na charge e na caricatura. Interpretações gerais presentes no elucidativo livro de Affonso Romano de Sant’Anna, a paródia é retratada como sendo uma religião: parricida, mata o “texto pai” em busca de uma possível diferença, instaurando o conflito, expulsando, de certa forma, a linguagem do seu espaço celestial. Para finalizar este percurso introdutório, a constatação: a metalinguagem é uma estratégia de autorreferência. No cinema, funciona quando temos o filme dentro do filme, citações de produções dentro do próprio sistema, cinebiografia de atores, atrizes, diretores e outras figuras do esquema de produção ou o relato de um movimento de determinada época, dentre tantas outras possibilidades.

Uma Pausa Para Woody Allen: Cinema e Processos Metalinguísticos

Registrado em outras incursões pedagógicas em minha prática de docente e palestrante convidado a versar sobre a linguagem cinematográfica há alguns anos, o cinema de Woody Allen possui alguns trechos ilustrativos quando a missão é fazer uma breve exibição sobre a relação do público com o cinema em determinados contextos históricos, como ocorre em A Rosa Púrpura do Cairo, situado na crise financeira de 1929, um dos momentos econômicos mais impactantes do capitalismo global do século XX, além de alguns pequenos trechos de Dirigindo no Escuro, quando o tópico temático é a exemplificação do funcionamento de um processo produtivo em escala industrial, dentro dos esquemas semelhantes aos padrões hollywoodianos. Ambas as produções, de 1985 e 2002, também se fazem presentes em Introdução ao Cinema, componente curricular do curso de Cinema e Vídeo do mesmo curso de graduação que vocês, caros leitores, contemplarão nos registros de experiências com Noivo Neurótico, Noiva Nervosa e A Era do Rádio, capítulos que sequenciam as reflexões de Palavra de Crítico: Introdução ao Cinema de Woody Allen. Ministrado ao longo de um semestre, o componente é portal de entrada para o curso superior em questão, jornada intelectual que traz um dos cineastas mais importantes da história do cinema há algumas décadas, criador do chamado “poder de troca” e “vitrine”, termos já discutidos na introdução.

Os filmes de Woody Allen são opções “obrigatórias” no planejamento de práticas sobre introdução ao cinema, não apenas por causa do pedagógico viés estético de sua cinematográfica apurada, independente de em alguns momentos, o realizador falhar dramaticamente. Trabalhar com A Rosa Púrpura do Cairo e Dirigindo no Escuro é permitir que os interessados nos mecanismos que engendram o código, isto é, a linguagem do cinema, tenha uma ideia de como se dá o processo de recepção crítica e como uma narrativa cinematográfica (e hoje, em larga escala, as séries) funcionam internamente, da ideia ao produto final. O trabalho em Introdução ao Cinema ocorre logo depois dos primeiros encontros sobre o cinema na virada do século XIX para o XX, momento da chamada “domesticação da imagem”, época de muita aderência da metalinguagem por parte dos realizadores que precisam demonstrar para as plateias alguns elementos de composição de uma arte que até então não tinha encontrados precedentes, ao menos da maneira como se mostrava ao público, basta ver a famosa cena da plateia fugitiva em uma sala, crente que o tema apresentado em tela tomaria o espaço e avançaria em cima de todos.

Martin Scorsese ilustra isso de maneira esplêndida em A Invenção de Hugo Cabret. Mas vamos, no entanto, para o universo metalinguístico de Woody Allen, combinado? Lançado em 1985, A Rosa Púrpura do Cairo apresenta, ao longo de seus 82 minutos, a jornada de Cecília (Mia Farrow), uma mulher apaixonada por cinema que enfrenta não apenas o contexto histórico de grave crise econômica, mas também o tratamento do marido em sua dimensão domiciliar, um espaço sufocante que depende das ilusões do mundo do cinema para se tornar suportável, haja vista a relação com Monk (Danny Aiello), seu marido machista e grosseiro. Acompanhada pela direção de fotografia de Gordon Willis e circundante pelo imersivo design de produção de Stuart Wurtzel, a personagem vive um momento inesquecível em sua vida, quando numa das sessões cotidianas que acompanha, o ator Tom Baxter (Jeff Daniels) escapa da tela depois de uma breve comunicação com a espectadora. Ao desafiar ironicamente os pontos já expostos por Walter Benjamin em sua reflexão sobre “reprodutibilidade técnica”, o personagem sai do mundo do cinema para ganhar a realidade.

O filme dentro do filme entra em crise e os demais personagens similares de outras cidades começam uma revolução metalinguística hilária, desde o desinteresse em atuar ao tentador desejo de também escapar da tela. Cecilia, catalisadora da “louca escapada” do personagem será a mesma responsável por domá-lo de volta para as telas, num dos desfechos mais brilhantes, mas não menos melancólicos do cinema de Woody Allen. Na jornada do cineasta, há outros tantos momentos metalinguísticos memoráveis, das homenagens ao cinema de Bergman e Fellini ao processo de reflexão sobre sua própria produção. O tema ganhará em 2002 uma abordagem mais explicita, muito menor que A Rosa Púrpura do Cairo nos quesitos dramáticos e estéticos, mas ainda assim, revelador para a compreensão da metalinguagem, recurso constante em seu cinema. O filme em questão é Dirigindo no Escuro, comédia com Santo Loquasto no design de produção e Wedigo von S. na direção de fotografia, setores responsáveis por nos permitir a sensação de mergulho intenso num processo de realização em escala industrial. Trajados pelos figurinos de Melissa Toth, os personagens circulam em meio ao filme dentro do filme, uma produção que não chegamos a acompanhar, mas que sabemos da concepção dramática ao último momento de filmagem.

Na trama, Val (Woody Allen) é um cineasta verborrágico e neurótico, outra constante nos filmes do diretor, pessoa sem um trabalho interessante há bastante tempo. A sua ex-esposa Ellie (Téa Leoni) tem como projeto a refilmagem de um clássico e acha que ninguém além do seu ex-marido pode dar vida ao filme. O seu atual companheiro, o produtor Hal (Treat Williams) resiste, mas depois de muita insistência, cede. O que vem depois disso é um festival de confusões, narrados pela jornalista que cobre os bastidores para uma revista bem-conceituada pelo público estadunidense. O caos começa com a cegueira repentina do homem que deveria ser o Big Brother da produção. Para piorar, seu diretor de fotografia é chinês e a equipe parece não entender absolutamente nada das orientações sem qualquer propósito estético hollywoodiano, o foco do filme dentro deste divertido filme. Em A Rosa Púrpura do Cairo, temos a possibilidade de discutir cinema e indústria, contexto histórico de realização e exibição, bem como a formação do cinema e suas dimensões em sociedades voltadas aos agendamentos da globalização que ganharia rumos frenéticos dentro e fora do contexto deste drama metalinguístico de uma das fases iniciais de Woody Allen. No caso de Dirigindo no Escuro, Woody Allen comprou para si uma batalha para realizar um filme que segundo depoimento em Conversas com Woody Allen, não foi devidamente compreendido pela crítica e por parte do público na época de lançamento.

Com discussões sobre temperamentos de atrizes, egos nos bastidores, dificuldades no gerenciamento dentro de um esquema industrial que em alguns casos, solapa os interesses artísticos em prol de demandas financeiras, a comédia paródica do cineasta é um filme complementar no que tange aos debates metalinguísticos possibilitados pelo seu cinema dentro do feixe de reflexões de um componente curricular introdutório, situado numa graduação em Cinema e Vídeo, algo que vai além do conhecimento técnico de câmeras e demais aparelhos do ramo, mas também pede bagagem cultural por parte dos estudantes que em breve, nas concepções de Pierre Bourdieu, farão parte de um campo de atuação movido por táticas e estratégias de produção. Além das abordagens do próprio cineasta sobre o processo onde o cinema fala de si mesmo, para os interessados em compreender mais sobre a linguagem do cinema, os mecanismos de produção e o estilo deste realizador formidável, torna-se relevante conferir Paris Manhattan, Woody Allen: Um Documentário, dentre outros projetos metalinguísticos que refletem o impacto da arte na vida dos realizadores e de nós, espectadores.

E a Linguagem Se Dobra Sobre Si Mesma: Mais Conceitos e Histórias

Neste tipo de narrativa, o espectador é tratado como alguém privilegiado, parte de um segredo que ao ser revelado, torna-se a resolução de um mistério, aqui retratado na demonstração de como funcionam os mecanismos de uma arte conhecida por manipular as nossas emoções por meio da edição que justapõe trilha sonora e design de som, as imagens da direção de fotografia, responsáveis por captar os espaços concebidos pelo design de produção, setor supervisor da cenografia, da direção de arte, dos figurinos, da maquiagem e de outras particularidades de uma narrativa. Privilegiados, os espectadores de uma produção metalinguística fazem parte de um “segredo”, contempladores de uma fórmula de sucesso há eras. Na época do cinema não-sonoro, por exemplo, os realizadores investiram em muitas produções do tipo, tendo em vista criar a ilusão da participação dentre os integrantes da plateia.

Era uma fase de familiarização, também interessada em homenagens. O cinema, assim, fala de si como arte e se orgulha de sua emancipação enquanto manifestação artística autêntica, promovedora de um espetáculo de ilusões e magia que mescla os traços que compõem aquilo que traz imagem e som unificados, inicialmente dissociados entre a tela e a orquestra/maestro que acompanhava externamente o material fílmico, posteriormente sincronizado com os avanços tecnológicos desta arte de massa capitaneada por investidores que sempre souberam o potencial econômico de suas narrativas. Essa sincronização pode ser vista com humor e irreverência em Cantando na Chuva, um dos musicais mais famosos da história, obra de entretenimento que reflete a importância do som no cinema, com passagens memoráveis e bastante didáticas para a compreensão do que se expõe neste breve artigo. Na trama, Don Lockwood (Gene Kelly) e Lina Lamont (Jean Hagen) são dois dos astros mais famosos da época do cinema mudo em Hollywood. Seus filmes são um verdadeiro sucesso de público e as revistas inclusive apostam num relacionamento mais íntimo entre os dois, o que não existe na realidade.

Mas uma novidade no mundo do cinema chega para mudar totalmente a situação de ambos no mundo da fama: o cinema falado, que logo se torna a nova moda entre os espectadores. Decidido a produzir um filme falado com o casal mais famoso do momento, Don e Lina precisam, entretanto, superar as dificuldades do novo método de se fazer cinema, para conseguir manter a fama conquistada. É um filme importante não apenas por trazer o famoso número musical com Gene Kelly cantando e dançando na chuva, referência clássica e marcante, mas a produção nos apresenta, como já mencionado, um período crucial para o desenvolvimento do cinema enquanto linguagem: a transição do cinema “mudo” para o cinema sonoro. O impacto na vida dos atores que precisaram reformular as suas carreiras para se adaptar ao novo panorama de produção. Nessa linha também temos Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder, e o mais recente O Artista, dois exemplares que discutem com afinco o estatuto do cinema como arte.

Na década de 1950, temos um período de constantes críticas ao sistema. Billy Wilder é o responsável por um dos grandes clássicos da época. Em Crepúsculo dos Deuses, temos um jogo de opacidades na trajetória de um roteirista que vai para a mansão de uma amarga atriz esquecida pela indústria cinematográfica. No local, situações adversas acontecerão e por meio de uma atmosfera sombria, conectada com elementos do filme Noir, os personagens enfrentam os seus conflitos e adentram num bifurcado jogo psicológico perigoso e mortal. Mais adiante, no divertido Quando Paris Alucina, a sétima arte é escrita e interpretada ao mesmo tempo pelos personagens de Audrey Hepburn e William Holden, dupla dirigida por Richard Quine, em 1964. Na trama, eles se juntam para escrever um material que é gestado com muita dificuldade após um intenso bloqueio por parte do roteirista da história, interpretado por Holden.

Na Itália, Fellini refletiu o cinema em várias ocasiões, inclusive em . Na trama, temos o cineasta Guido Anselmi (Marcello Mastroianni), homem prestes a rodar o seu próximo filme, mas ainda não tem ideia de como será a produção. Mergulhado numa crise existencial e pressionado pelo produtor, pela mulher, pela amante e pelos amigos, ele se interna em uma estação de águas e passa a misturar o passado com o presente, ficção com realidade, numa trama importante para refletirmos a angústia do cineasta italiano Federico Fellini diante da pressão midiática e da indústria cinematográfica. Diante de seu bloqueio criativo para a criação do roteiro e dos personagens de sua próxima história, o filme nos oferta um olhar sofisticado para o chamado “cinema de autor”. Um cineasta que dirigia, escrevia e ainda participava de outros processos que engendram a produção de um filme. Mais complexo que as demais narrativas populares explanadas neste artigo, pede um espectador mais treinado, pois o processo interpretativo é um pouco mais exigente. Como complemento, há uma releitura intitulada Nine, dirigida por Rob Marshall, narrativa que reinterpreta a atmosfera e presta a sua bela homenagem ao cinema.

Na década de 1970, dentre tantas homenagens, temos A Noite Americana, de François Truffaut, e No Mundo do Cinema, de Peter Bogdanovich, produções de 1973 e 1976, respectivamente. Na produção de Truffaut, temos uma história desenvolvida na França. É lá que começam as filmagens do longa Je Vous Présente Pamela, filme que narra a trajetória de uma jovem inglesa que troca o marido francês pelo sogro. Ferrand (François Truffaut) é o diretor, Alphonse (Jean-Pierre Léaud) o inseguro galã, Séverine (Valentina Cortese) a diva perto da aposentadoria e Julie (Jacqueline Bisset) interpreta a protagonista Pamela, atriz constantemente à beira de um ataque de nervos. O processo produtivo dificultoso parece um hospício, mas são os bastidores de um set de filmagens. É um filme importante para refletirmos a metalinguagem, pois permite que o espectador tenha uma “aula” sobre o processo de criação dentro da indústria cinematográfica. A linguagem da produção não é complexa, além de ser um dos melhores filmes para “introdução ao cinema”. No caso do clássico de Bogdanovich, temos uma série de reflexões do cinema enquanto arte marcante no século XX, narrativa construída numa atmosfera de magia e homenagem.

Win Wenders e Jean Luc-Godard também deram as suas contribuições para a metalinguagem na história do cinema. No primeiro, O Estado das Coisas, temos um produtor que desaparece com os negativos durante as filmagens num hotel em Portugal. Sem dinheiro para continuar o trabalho, o diretor tenta achá-lo, mas encontra outros problemas, alegorias para a representação das diferenças e semelhanças entre o cinema estadunidense e o europeu. Nesta produção, lançada em 1982, Wenders supostamente pavimentou um caminho para exorcizar os demônios referentes à produção de um filme problemático nos Estados Unidos, ao lado de Francis Ford Coppola. As suas discussões propõem um debate sobre a situação do cinema enquanto linguagem e indústria. Antes em 1963, Jean Luc-Godard dirigiu O Desprezo, produção situada na Itália sobre uma equipe que grava sob a direção de Fritz Lang, um filme baseado na Odisseia, de Homero. Na trama, Camille (Brigitte Bardot) é casada com Paul (Michel Piccoli), um escritor que foi contratado pelo produtor americano Jeremy (Jack Palance) para escrever o roteiro por 10 mil dólares. O desprezo de Camille começa quando ela passa a acreditar que o marido tentou vendê-la ao produtor, quando ele insiste para que a bela mulher fique sozinha com Jeremy. Uma série de mal-entendidos faz com que a relação do casal vá se fragmente neste filme que apresenta uma crítica ao mundo dos produtores, profissionais que prejudicam certas produções por conta do interesse financeiro. Uma obra instigante para ver e se questionar:  há validade nesta crítica ao cinema comercial? O que é o cinema comercial? Um filme se vende sem estar no circuito? São pontos de articulação que ampliam as possibilidades metalinguísticas e reflexivas.

Nos desdobramentos de Cinemaníaco, de 1979, o cineasta polonês Krzysztof Kieslowski nos propõe uma percepção do cinema como uma forma de observação da vida. É um filme que nos permite notar um questionamento do cineasta sobre a natureza do olhar documental. Visto hoje, três décadas de sua produção, pode ser considerado uma narrativa de transição na carreira do cineasta polonês. É uma espécie de rito de passagem entre a fase documental e os trabalhos ficcionais do autor mais conhecido pela Trilogia das Cores e pelo denso Decálogo. É um filme importante, pois propõe um exercício mais complexo de análise da linguagem cinematográfica por parte dos interessados em metalinguagem. Os documentários realizados pelo personagem Filip, protagonista da trama, são filmes que o próprio Kieslowski aparentemente gostaria de ter realizado, mas que infelizmente, foi impedido por questões políticas. Há dois pontos nevrálgicos em Cinemaníaco que devem ser salientados: é uma obra sobre a relação da arte com a censura, bem como uma história que retrata a obsessão de uma pessoa pelas possibilidades de expressão diante da linguagem cinematográfica. Um filme sobre se expressar. Sem restrições.

A metalinguagem de Pânico começa em 1996 e atravessa gerações, ao chegar em 2011 e ter propostas para continuar agora em 2022, com o lançamento do quinto filme da franquia. A série gira em torno de três protagonistas: Sidney Prescott, Dewey Riley e Gale Weathers, interpretados por Neve Campbell, David Arquette e Courtney Cox, respectivamente. Sidney é a final girl da história, personagem alvo principal em todos os filmes, pois tinha uma “divida” com os assassinos ao longo dos episódios da saga. Nos quatro filmes, há constantes jogos de complexidades por detrás dos assassinos e os fatos, todos interligados. Para entender os crimes dos últimos filmes é preciso conferir os episódios iniciais. São produções importantes porque utilizam a própria linguagem dos filmes de terror para a construção das narrativas, referenciando personagens e vanguardas do gênero, em especial, no primeiro e no quarto filme.

O segundo capítulo explora a violência na contemporaneidade, abrindo três discussões excepcionais: a presença do negro no cinema, a qualidade do sistema de sequências na indústria cinematográfica e as relações entre cinema e teatro. O filme é encerrado com um ato no palco de um teatro, como na encenação de uma tragédia, metalinguagem entre artes afins. No terceiro, somos mergulhados nos bastidores de produção de um filme baseado nos acontecimentos do primeiro. Pode ser conferido em paralelo com as concepções contemporâneas de A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord, conceito de meados do século XX, com ressignificações na atualidade. O quarto filme também dialoga com a concepção de “espetáculo”, desta vez, ligado ao contexto das mídias virtuais: o assassino da vez filma os crimes para postar na internet e o desejo pelos “15 minutos” de fama. Lenda Urbana 2 segue a linha referencial, sendo um slasher que também é metalinguístico. Menos interessante, dramaticamente frágil, mas ainda assim, eficiente no quesito metalinguagem, pois nos revela os bastidores e reflete contextos.

Outros dois casos de metalinguagem que gosto muito, haja vista a qualidade dramática de um e o tom didático de outro é Cinema Paradiso e Hitchcock, de 1990 e 2012, respectivamente. No primeiro, sob a direção de Giuseppe Tornatore, temos uma apresentação dos anos que antecederam a chegada da televisão em uma pequena cidade da Sicília. Lá, o garoto Toto (Salvatore Cascio) fica hipnotizado pelo cinema local e inicia uma amizade com Alfredo (Philippe Noiret), projecionista que se irritava com certa facilidade, mas tinha um enorme coração. Todos estes acontecimentos chegam em forma de lembrança quando Toto (Jacques Perrin), agora um cineasta de sucesso, recebe a notícia de que Alfredo faleceu. Ele retorna ao local e resgata a história de sua vida, numa das mais emocionantes narrativas metalinguísticas do cinema moderno. É uma história valiosa para o assunto em questão por nos mostrar o cinema numa perspectiva memorialística. Questões como a cinefilia, a relação da Igreja Católica e a censura com os filmes, a transformação dos cinemas de rua em estacionamentos, dentre outros tópicos de discussão sobre história e linguagem cinematográfica, se fazem presentes nesta narrativa densa e intensa.

No segundo, temos uma dinâmica e cuidadosa releitura da trajetória de Hitchcock. Dirigido por Sacha Gervasi, cineasta que comanda o material dramático baseado no livro Alfred Hitchcock e os Bastidores de Psicose, de Stephen Rebello, este filme revela os bastidores do clássico Psicose. Na época, o realizador inglês radicado nos Estados Unidos não conseguiu apoio financeiro para realizar um dos clássicos considerados como a sua obra-prima. Os estúdios não queriam investir em um pequeno filme de terror, tendo como resultado, uma produção independente, de baixo orçamento, que encontrou grandes dificuldades para driblar a censura conseguir alcançar a adequada distribuição no território estadunidense, tudo isso em função das cenas de violência e nudez, algo banal hoje, mas polêmico na época. Além disso, diversos obstáculos surgiram durante as filmagens, como as brigas constantes entre Hitchcock e sua esposa, Alma (Helen Mirren), os problemas de saúde do diretor e seus desentendimentos com o elenco. Contrariando todas as expectativas, Psicose se tornou uma referência no cinema mundial, e um dos maiores sucessos na carreira do cineasta. Os bastidores, logicamente, são imaginados, haja vista a conexão com o nosso atual contexto, mas as liberdades não impedem que possamos observar, por meio de situações de releitura, a descoberta do livro de Robert Bloch pelo diretor, a produção do roteiro, a divulgação para mídia, a mudança brusca de estilo do diretor, a seleção do elenco, o processo de filmagem, a pós-produção, a relação com a censura e o lançamento e o sucesso do filme.

Aqui no Brasil, o nosso sistema de produção entregou um ótimo exemplar metalinguístico em Saneamento Básico, de Jorge Furtado. No filme, os moradores de Linha Cristal, uma pequena vila de descendentes de colonos italianos localizada nas imediações da serra gaúcha, reúne-se para tomar providências a respeito da construção de uma fossa para o tratamento do esgoto. A secretária da prefeitura reconhece a necessidade da obra, mas informa que não possui a verba para realizar o serviço até o final do ano, entretanto, a prefeitura dispõe de quase R$ 10 mil para a produção de um vídeo, parte integrante de um edital. Como esta quantia foi fornecia pelo governo federal e, se não for usada, será devolvido em breve, surge a ideia emergencial de utilizá-la para a realização da obra, com a produção de um vídeo sobre a própria obra, que teria o apoio da prefeitura. No entanto, a retirada da quantia depende da apresentação de um roteiro e de um projeto do vídeo, além das exigências sobre o caráter ficcional da realização. Diante dos conflitos, os moradores se reúnem para elaborar um filme, estrelado por um mostro que vive nas obras de construção de uma fossa, numa trama que apresenta as dificuldades de produção com orçamentos precários. Interessante e eficiente enquanto entretenimento, Saneamento Básico nos oferece um olhar para contextos de realização diferenciados do porte da grande indústria hollywoodiana e de suas ramificações ao redor do planeta. Como complemento, deixo como dica Sal de Prata, de Carlos Gerbase, narrativa irregular sobre processos internos de produção no cinema, obra que falha enquanto entretenimento, mas permite reflexões sobre metalinguagem.

Com direção de Jack Black, Rebobine, Por Favor nos apresenta o próprio diretor na interpretação de Jerry Gerber (Jack Black) decide sabotar a usina elétrica de sua cidade, já que acredita que ela está derretendo seu cérebro. Para isso, ele conta com a ajuda de Mike (Mos Def), o seu melhor amigo, homem que trabalha em uma antiga locadora que apenas aluga fitas VHS. A tentativa de invasão dá errado. Resultado? A situação faz com que Jerry leve um grande choque. Assim, sem perceber, ele fica magnetizado. Ao entrar na locadora onde Mike trabalha, o jovem desmagnetiza, sem querer, todos os filmes disponíveis. Com a viagem de Elroy Fletcher (Danny Glover), o dono do local, cabia a Mike cuidar do estabelecimento. Desesperado, ele decide rodar os filmes por conta própria, juntamente com Jerry. É um filme importante porque além de ser divertido, utiliza a metalinguagem para nos mostrar que o cinema envolve memória individual e coletiva. Ademais, a cultura da refilmagem é um debate possível, bem como a nostalgia do VHS e da forma como os filmes eram cultuados “antigamente”, na era das videolocadoras, época refletida no também metalinguístico, mas documental, Cinemagia – A História das Videolocadoras de São Paulo, conteúdo geograficamente situado, mas alegórico para qualquer região do país.

E Chegamos ao Desfecho!

Como observado, no cinema metalinguístico a própria linguagem é utilizada como tema e conteúdo daquilo que será escrito. São filmes que descortinam os bastidores e tecem críticas ao sistema, delineiam percursos históricos da arte em questão e nos ensinam mais ou menos como é e como se fazem as coisas neste universo audiovisual. Obras que ensinam sobre os processos de engrenagem da formação de uma linguagem dominante no século XX, sempre em constante transformação e levada para o streaming e outras plataformas na atual era da cibercultura. Como professor de Crítica e Linguagem do Cinema, considero que assistir ao máximo de filmes para compreender a linguagem é uma das melhores maneiras de trabalhar o “olhar” crítico. Uma das estratégias para a reflexão dos processos de produção e interpretação da arte cinematográfica é assistir aos filmes metalinguísticos, as obras que refletem os mecanismos de criação dentro do cinema. Multifacetada, como já exposto, a metalinguagem pode retratar as cinebiografias de cineastas, atrizes e atores, tramas sobre os bastidores de produções polêmicas e famosas, períodos específicos da história do cinema etc. A exposição realizada aqui não é totalitária. A lista de produções metalinguísticas é bastante numerosa. Como todo processo de elaboração de um cânone, infelizmente não temos espaço para a inclusão total, sendo necessário um recorte. Coisa de quem trabalha com métodos de pesquisa.

Aqui, tracei um panorama de produções que vão te ajudar no processo de formação do pensamento crítico e organizado sobre a história e a linguagem do cinema. Agora o trabalho é seu, combinado, caro leitor?  Aos interessados, indico também Os Picaretas, A Garota, Dor e Glória, Simone, Rebobine, Por Favor, O Artista, Cinema, Aspirinas e Urubus, Os Sonhadores, Ave César, O Jogador, Close-Up, Um Homem com a Câmera, Carnaval Atlântida, Berberian Sound Studio, Barton Fink, Delírios de Hollywood, O Novo Pesadelo – O Retorno de Freddy Krueger, Amaldiçoados, Amigos Muito Íntimos, No Silêncio da Noite, Virando a Página, Boogie Nights: Prazer Sem Limites, Cidade dos Sonhos, A Invenção de Hugo Cabret, Chaplin, Abraços Partidos, Ed Wood, O Homem das Novidades, Adaptação, Dublê de Corpo, Um Tiro na Noite, A Tortura do Medo, Salve o Cinema, Era Uma Vez em… Hollywood, Mapas Para as Estrelas, Dália Negra, 8 MM, O Aviador, dentre outros.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais